Project Gutenberg's Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I), by Rui de Pina This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I) Author: Rui de Pina Release Date: July 6, 2008 [EBook #25987] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI (VOL. I) *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) BIBLIOTHECA DE CLASSICOS PORTUGUEZES PROPRIETARIO E FUNDADOR _MELLO D'AZEVEDO_ Bibliotheca de Classicos Portuguezes Proprietario e fundador--Mello d'Azevedo CHRONICA DE EL-REI D. AFFONSO V POR _Ruy de Pina_ VOL. I _ESCRIPTORIO_ 147--Rua dos Retrozeiros--147 LISBOA 1901 Duas palavras de introducção El-rei D. Manuel _encomendou com grande efficacia_ a Ruy de Pina a chronica de D. Affonso V. E elle escreveu baseado em informações e nos documentos que poude alcançar, com uma sinceridade notavel em chronista de palacio occupando cargos de confiança regia. Parcial todavia, pouco inclinado a cousas de Hespanha e da nobreza, conta-nos a historia d'esse periodo de fórma que parece preparar o espirito do leitor para as grandes luctas do reinado seguinte. A historia da épocha de D. Affonso V importa ao estudo da nacionalidade portugueza em qualquer ponto de vista. Affirma-se a auctoridade real, apezar das prodigalidades do rei, a independencia da nação em combates rijos, a expansão ultramarina define-se com o arrojo dos navegantes e dos homens de guerra, a cultura dos espiritos sóbe, os costumes policiam-se, attende-se a melhoramentos materiaes nas povoações. A propria figura do rei desperta vivamente a attenção; os seus primeiros annos passaram num meio agitado, difficil, triste talvez, pelas luctas palacianas, mas util para a formação de espirito culto pela frequencia, provavel, de homens superiores como os infantes D. Pedro e D. Henrique. Pelo que nos conta Ruy de Pina foi lastima que Affonso V fosse rei, porque era bom de mais, com sua parte de phantasia mansa. Era um sereno, de _piadosa condição_, _familiar_, grande amador de musica e de livros, e tambem de emprezas arriscadas. Quando a Excellente Senhora professou, grassava em algumas cidades do paiz o contagio com grande intensidade, elle desconsolado quiz deixar a governança, queria ser leigo no seu mosteiro do Varatojo. Como era generoso e pouco calculista, sem sentir, pouco a pouco, foi accumulando de mercês certos fidalgos insaciaveis, o que originou depois a grande lucta dos primeiros annos de João II. N'esses quadros agitados destacam-se figuras principaes como o infante D. Pedro, o das sete partidas, e D. Henrique o navegador, sempre com a sua idéa fixa de descobrir terras, os condes de Viana, e de Avranches, grandes senhores, e aquelle singular bispo D. Garcia de Menezes tão brilhante orador e guerreiro que tristemente encerrou a sua vida. Outros vultos de raro perfil movimentam ainda a épocha, D. Pedro o rei intruso de Aragão, filho do infante D. Pedro, erudito, collecionador de livros e medalhas, o duque de Borgonha, a Excellente Senhora. No meio das luctas e intrigas estrondea o casamento de D. Leonor. Depois das gloriosas jornadas de Alcacer, Tanger, Anafé e Arzilla, a ida para França. O chronista não esquece os movimentos populares, as luctas na cidade de Lisboa, as uniões e alvoroços; nem a lucta contra o Turco que em 1480 quasi se assenhoreou do Mediterraneo. Hoje conhecemos outros documentos, os antecedentes da Alfarrobeira estão mais esclarecidos, papeis de aleivosia como o testemunho do escudeiro João Rodrigues correm impressos. Ha documentos tambem para o modo de viver da épocha que em geral não mereceram attenção aos chronistas, os que dizem respeito a costumes, a questões economicas, ao direito. A publicação das Ordenações, começadas em tempo de João I.^o é facto capital. Em chronicas francezas encontram-se noticias de valor, ainda não approveitadas. Finalmente será preciso estudar noutra parte, e hoje ha muitos elementos publicados, o admiravel esforço do infante de Sagres, e da sua gente, n'este periodo, nos gloriosos descobrimentos dos novos caminhos maritimos, dos archipelagos do Atlantico revelados successivamente, G. Pereira. PROLOGO DA Chronica do Mui Alto e Mui Poderoso Principe EL-REI D. AFFONSO D'ESTE NOME O QUINTO _E dos Reis de Portugal o duodecimo, dirigido ao muito alto e muito excellente Principe, El-Rei D. Manuel, seu sobrinho, nosso Senhor, por cujo mandado Ruy de Pina, Cavalleiro de sua casa e seu Chronista Mór e Guarda Mór da Torre do Tombo, nova e primeiramente a compoz_ O mais singular e mais proveitoso conselho, Serenissimo Rei, que Demetrio Phalereo, philosofo mui sabedor, deu ao grande Tholomeu, Rei do Egypto, para sobre todolos Reis de seu tempo poder ser mais excellente, foi que procurasse de vêr, e ter por mui familiares os livros, principalmente aquelles, em que os virtuosos costumes e claros feitos dos illustres Reis e Principes passados fossem verdadeiramente escriptos: amoestando-o que com vivo cuidado os lesse e ouvisse: nem era sem causa; porque, como mui prudente, sabia que os livros, posto que sejam conselheiros mortos, sempre porém ensinam e dão verdadeiros e sãos conselhos, mui livres e isentos das paixões dos conselheiros vivos, dos quaes muitas vezes por não saberem, e outras por não quererem, e muitas mais por não ousarem, se nega e esconde a clara verdade, que a seus maiores e Senhores pospõem ás proprias inclinações e paixões d'affeição, odio, lisonjaria, interesse ou temor, que são causa da mais certa queda, e principal destruição de reinos e senhorios. E por tanto, muito poderoso senhor, no conhecimento dos bons exemplos e das cousas passadas, de que a Historia é um vivo espelho, e os livros são fieis thesoureiros, se recebe, para não errar, conselho sem paixão, e doutrina sem receio, de que á Humanidade e ao Estado Real principalmente se segue um mui seguro proveito, e por isso a Deus grande e mui assignado serviço. E posto que das Chronicas e lembranças escriptas das perfeitas bondades e memorandas façanhas dos claros barões não naturaes e estrangeiros, quando as lemos e ouvimos, logo nos movem para aborrecer os vicios, e com uma virtuosa inveja de seus gloriosos exemplos, nos espertam e guiam para o caminho de suas louvadas virtudes e fama; porém, outra differença de vergonha, outra viveza de gloria, outro acendimento d'esforço sentimos logo em nossos corações, quando lendo topamos, e com tento esguardamos nas excellentes virtudes e prosperas empresas de nossos proprios naturaes, e maiormente d'aquelles de que descendemos; porque tanto mais nos acendem e obrigam para os semelharmos e seguirmos, quanto a certa verdade de suas virtuosas obras e grandes feitos é de maior contententamento e mais chegada a nosso fresco conhecimento, com que a não duvidamos. E por esta tão urgente causa e bem tão universal, e principalmente por honra e gloria de vossos reinos de Portugal, Vossa Mui Real Senhoria, como virtuoso Rei mui piedoso e verdadeiro successor d'elles que é, sabendo que a memoria das reaes virtudes e feitos imperiaes do mui glorioso Rei D. Affonso o quinto, vosso tio e predecessor, cujo irmão legitimo era o mui illustre Infante D. Fernando vosso padre, por negligencia sua ou mingoa d'escriptores não eram já do escuro esquecimento menos gastadas, que sua carne e seu corpo que a terra comia: por mais illustrardes vossa legitima descendencia, e vossa corôa real não ficar sem uma guarnição de pedraria tão preciosa, como é sua clara e louvada memoria: e assi por Vossa Alteza mostrar um santo ensino e maravilhoso exemplo de Rei, encommendou com grande efficacia a mim Ruy de Pina, Cavaleiro de vossa casa, Chronista Mór de vossos reinos e Guarda Mór da Torre do Tombo d'elles, que, quanto á minha deligencia e entendimento fosse possivel, trabalhasse de haver as cousas notaveis de seu tempo, e para sua Chronica mais necessarias, e a compozesse. E como quer, muito poderoso Rei, que a carrega e peso d'esta Obra, por ser tão digna e tão necessaria, e com desejo e cuidado tão virtuoso, como é este vosso, já foi outras vezes posta e encommendada sobre os hombros e forças d'outros chronistas d'estes reinos, que ante mim foram pessoas de singular doutrina e mui sufficientes: e por suas grandes e desesperadas difficuldades e peso incomportavel, elles nem sómente a moveram; porém eu que para vencer e passar com ella caminhos já tão cerrados e de tanta aspereza e escuridão, convertidas já em uma manifesta impossibilidade, por vir ao fim de vosso desejo e esperança, tomei por guia e salvo conduto de tantos temores vosso mandado e o vivo desejo que sobre todos em mim sinto de sempre bem e lealmente servir Vossa Real Senhoria, e inteiramente lhe obedecer: confiando que ao menos, pelo merecimento de minha obediencia, algum tanto serei relevado do erro da ignorancia e temeraria ousadia com que emprendi e acabei esta real e mui verdadeira chronica, cuja sequencia é n'esta maneira. CHRONICA DO SENHOR REI D. AFFONSO V CAPITULO I _Narração_ O muito alto e muito excellente Rei D. Duarte, d'este nome o primeiro, e onzeno dos Reis de Portugal, acabou sua desejada e necessaria vida com claros signaes de grande contrição, e com certo testemunho de salvação de sua alma, em a Villa de Thomar, quinta feira IX dias de Setembro, anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e quatrocentos e XXXVIII: no qual dia por espaço de duas horas o sol em grande cantidade foi cris, assi como tambem o foi na hora do fallecimento d'El-Rei D. João seu padre, e da Rainha D. Filippa sua madre. E as cousas que de sua antecipada morte se conjeituram, e aos autos de prantos e tristezas que se n'ella não podiam escusar, e como foi levado ao mosteiro da Batalha, onde jaz sepultado, em sua Chronica, onde propriamente pertence, com maior declaração estão apontadas. E por seu fallecimento ficaram legitimos dois filhos e quatro filhas: I o Principe D. Affonso filho seu maior, primogenito herdeiro, que logo foi alevantado por Rei, que de sua edade havia seis annos e entrava em sete: e o Infante D. Fernando, padre d'El-Rei D. Manuel nosso Senhor: e a Infante D. Filippa, que no anno que o dito Rei falleceu se finou em Lisboa de onze annos: e a Infante D. Lyanor, que foi imperatriz d'Allemanha: e a Infante D. Catherina que sem casar falleceu e jaz em Santo Eloy de Lisboa: e a Infante D. Joanna, de que a Rainha D. Lyanor ficou prenhe, e foi Rainha de Castella, casada com El-Rei D. Anrique, o quarto d'este nome. E ficaram outrosi vivos estes irmãos d'El-Rei D. Duarte, filhos d'El Rei D. João I; o Infante D. Pedro, que era duque de Coimbra: e o Infante D. Anrique, que era duque de Vizeu e tinha o Mestrado de Christus: e o Infante D. João, que era Condestabre do Reino e tinha o Mestrado de Santiago: e o Infante D. Fernando, que então era captivo em Fez e tinha o Mestrado d'Aviz: e a Infante D. Izabel, legitima duqueza de Borgonha, casada com o duque Filippe: e D. Affonso conde de Barcelos, que depois foi duque de Bragança, que era filho natural d'El-Rei D. João. Ao tempo que o dito Rei falleceu não eram em Thomar outras pessoas principaes, depois do Principe D. Affonso e seu irmão, salvo a Rainha D. Lyanor sua mulher, filha d'El-Rei D. Fernando d'Aragão, e o Infante D. Pedro, irmão primeiro legitimo d'El-Rei: o qual, por dar ordem ao alevantamento d'El-Rei D. Affonso seu sobrinho, e ás outras cousas que pertenciam para bem do reino, ficou na dita villa e não foi com o corpo de seu irmão, a que não falleceu outra muita e honrada companhia. CAPITULO II _Alevantamento d'El-Rei_ Era quinta feira logo seguinte, dez dias do dito mez: o Infante D. Pedro, como Principe a que das cerimonias reaes e das outras cousas em que cabia descrição e virtude nada s'escondeu, fez fazer antre o convento e os paços do castello da dita villa um assentamento assi real e ricamente guarnecido, como para o auto cumpria. E á bespora do dito dia, o Infante com todolos fidalgos e nobre gente da côrte foram aos paços d'El-Rei, que eram dentro no convento, vestidos por então os corpos dos panos mais ricos, mas as almas e caras de clara tristeza, que em todos não era fingida, mas verdadeira e justa, assi pela privação d'El-Rei, que era muito virtuoso e para todos de grande humanidade e boa condição, como por lhes os corações revelarem as grandes divisões e muitos trabalhos, em que pela soccessão de tão novo Rei se haviam de vêr, como viram. O Principe D. Affonso posto em vestiduras reaes, e bem acompanhado de todos, sahiu fóra ao assentamento, onde pelo Infante D. Pedro com grande reverença, e muito acatamento foi posto na cadeira real. E emquanto um Mestre Guedelha, singular fysico e astrologo, por mandado do Infante regulava, segundo as influencias e cursos dos planetas, a melhor hora e ponto em que se poderia dar aquella obediencia: o Infante volveu a contenença ao povo, e com grão segurança e palavras mansas disse: «Como quer que, o dia d'hoje com muitos dos que virão, teriamos justa causa dar lugar a nossos olhos, que com muitas lagrimas testemunhassem a dôr e perda que recebemos na morte de um Principe tão catholico e tão virtuoso, e tão necessario a nós todos como foi El-Rei meu Senhor e irmão, cuja alma Deus haja: devemos, porém, consirar como catholicos e de razão, que, pois em escusar sua morte não ha remedio, que duas cousas sómente nos ficam, para que a Deus e ao mundo certefiquemos o amor e boa vontade que lhe tinhamos. A primeira, em nossas orações, jejuns e obras meritorias havermos sua alma em memoria para a encommendarmos a Deus. A segunda, este ramo em todolos signaes de virtudes tão florecido, que de seu real Tronco naceo, que é o mui excellente Princepe D. Affonso seu filho nosso Senhor, que temos presente, havermo-lo de reconhecer, servir e amar por nosso só natural e verdadeiro Rei e Senhor, como o requere nossa mui antiga e costumada lealdade, e o Direito nos obriga. E, porém, vo-lo apresento aqui para o assi em todo o reconhecerdes, e vos encommendo da sua parte, que para o assi fazerdes não hajaes respeito á sua nova idade, mas ás velhas obrigações em que para isso lhe soes e sua Real Senhoria nos dá já uma mui certa esperança d'acharmos n'elle honra, mercê, favor e justiça, como cada um o merecer e lh'o requerer.» E em dizendo Mestre Guedelha, que era boa hora para fazer sua obediencia, o Infante com os giolhos em terra tomou as mãos ao Principe, e em lh'as beijando disse: «Muito alto e muito excellente Senhor, assi como vos eu hoje ponho n'esta seda, em que vós por graça de Deus legitimente recebeis o real Septro e senhorio d'estes vossos reinos, assi espero com sua ajuda e minha grande lealdade de vo-los ajudar a manter e deffender com todas as minhas forças e poder, e saber, quando me vossa Mercê mandar, ou eu sentir que cumpre a vosso estado e serviço.» E com estas palavras acabando se alevantou. E logo D. Duarte de Meneses, alferes mór, filho do conde D. Pedro de Meneses, primeiro capitão de Ceuta, com a bandeira real levantada, e os reis d'armas e arautos com elle começaram alli sua grita, e depois com ella foram pela villa, repetindo-a tres vezes, segundo custume, com toda aquella cerimonia e solemnidade que a tal auto real pertencia; porque o Infante D. Pedro, por cuja ordenança e mandado se fazia, era Principe n'aquellas cousas mui ensinado, e quiz n'aquelle auto que não ficasse cousa dina por fazer: assi porque assi o requeria sua grande bondade e a muita lealdade em que nascêra: como por mostrar a muitos de damnadas maginações, e á Rainha D. Lyanor principalmente, que aquella fôra sempre, e era sua leal e verdadeira tenção d'obedecer, e não a outra falsa de querer por força reinar, como lhe faziam crêr que elle desejava. Porque a Rainha, como quer que sempre foi muito honesta, virtuosa, prudente, devota e muito amiga da vida e honra d'El-Rei seu marido: porém sempre em sua vida mostrou ao Infante D. Pedro que não lhe tinha boa vontade: e as causas porque assim fosse eram occultas para culpar o Infante, salvo se procedessem de induzimentos alheios, que em sua feminil fraqueza de ligeiro fariam impressão, ou por ventura procederia das imisades que foram entre El-Rei D. Fernando d'Aragão, pae da rainha, e o conde d'Urgel, pae da Infante D. Izabel, mulher do dito Infante D. Pedro, que pertendeu por direito na successão d'Aragão, e foi d'El-Rei n'ella vencido. CAPITULO III _De como começaram de entender nas cousas do reino, e se viu o testamento d'El-Rei_ Tanto que a Rainha viu seu filho alevantado por Rei, logo fez chamar á sua casa o Infante D. Pedro, e o Arcebispo de Lisboa, D. Pedro de Noronha, primo com irmão de seu pae d'ella, e as outras principaes pessoas que hi eram. Perante as quaes, em presença de notairos publicos, fez abrir e lêr o testamento d'El-Rei seu marido, em que foi achado ella, sem ajuda d'outra pessoa, ficar in solido testamenteira de sua alma, e titor e curador de seus filhos, e regedor do reino, e herdeira de todo o movel. E encommendou n'elle muito que, por dinheiro, ou captivos, ou por outra qualquer maneira tirassem de poder dos mouros o Infante D. Fernando seu irmão; e quando por semelhantes meios não fosse possivel, que então Ceuta sem escusa se desse por elle; da qual publicação a Rainha por sua guarda mandou tomar estromentos, e começou logo a usar do regimento inteiramente sem alguma publica contradicção: como quer que alguns seus servidores avisados e virtuosos, e que de verdade amavam sua vida, honra e descanso, logo sã e secretamente lhe disseram em conselho n'esta maneira: _Conselho que se deu á Rainha_ «Senhora, o peso d'este cargo de reger, que assi soltamente tomaes, é mui grande e tal, que muitos barões abastados de fortaleza de coração e de prudencia o receáram. E por serdes mulher e ainda estrangeira, como quer que para isso haja em vós sã consciencia e conhecidas virtudes com mui santo desejo, em caso que não houvesseis n'elle alguma contradicção, certo duvidamos que o possaes soffrer; porque Vossa Senhoria ha-de consirar que são n'este reino tres Infantes, grandes Principes, e de muita autoridade, e naturaes da terra, que hão d'estimar por quebra e abatimento de seus estados serem regidos por mulher, especialmente não natural nem herdeira, como vós sois, e que o por suas bondades e assessego de todos quizessem consentir, não falleceriam outros amigos de novidades, que lh'o fariam sentir e obrar por outra maneira: de que se não podem escusar odios, escandalos e outros muitos males, em especial claros impedimentos para vós, nem elles estes reinos poderdes reger, como a serviço de Deus e d'El-Rei, e bem d'elles cumpre: de que vos muito deve pesar. E não vos fieis nos offerecimentos e muita parte que vos muitos de si agora prometem, para crerdes que o esforço d'estes enfraquentára o dos outros; porque em fim todos, ou a mór parte hão de seguir a vontade dos Infantes, qualquer que fôr, quanto mais que já agora pelas praças se solta, que El-Rei nosso Senhor, vosso marido, que santa gloria haja, vos não podia leixar este cargo de reger: cá este poder demleger regedor do reino era sómente ao reino e aos tres estados d'elle reservado; e d'onde isto agora sae de presumir é que mais jaz. Pelo qual nosso conselho seria, que agora com prazer e assessego vosso, e do reino, consirados todos estes inconvenientes, leixasseis assi de vossa vontade este regimento, antes que depois o leixardes forçada, ou impedida de vossa natural fraqueza, ou de outras forças maiores: o que deve ser com pouca honra e contentamento vosso. E a vós, Senhora, bem abastara terdes cuidado da criação de vossos filhos, e do descargo d'alma d'El-Rei vosso marido, que são cousas assás grandes, honradas e honestas.» A Rainha, como era senhora de bom entender e de tenção sã, e conforme em todo ao serviço de Deus, pareceu-lhe bem este conselho, e quizera-o seguir; mas não falleceram logo outros, que com outras razões córadas ao revés d'estas, a mudaram d'este proposito, e fizeram tomar determinação de todavia reger só: dando-lhe estes, por principal causa, a segurança da vida e estado de seus filhos, que em poder do Infante D. Pedro lhe faziam crêr que não seriam muito seguros, por ser principe poderoso, amado do povo, e tinha filhos, e podia n'elle entrar o desejo de reinar, que vence todolos outros; e assi venceria n'elle a divida lealdade para o executar. CAPITULO IV _Da vinda do Infante D. Anrique à côrte, e das cousas que se logo acordaram_ O Infante D. Anrique, depois da vinda do cerco de Tangere, que veiu fallar a El-Rei seu irmão a Portel, como anojado do captiveiro do Infante D. Fernando, seu irmão: e por o feito se não seguir, como desejava, se tornou logo ao reino do Algarve, sem mais tornar a este; e como lá foi avisado da doença d'El-Rei, pelo grande amor e muita lealdade que lhe tinha, partiu logo: e assi trigou suas jornadas, que em mui poucos dias chegou a Thomar, onde já achou El-Rei fallecido. Mas a Rainha, e o Infante D. Pedro, e toda a côrte, vendo-o com sua triste livré, renovaram com sua vista outros prantos maiores, nem era sem razão; porque n'elle pareciam signaes de tanta tristeza, e dizia palavras de tanto sentimento, que aos dormentes na dôr espertava para chorar, e ser tristes. A Rainha depois d'esto enviou chamar o Infante D. Pedro, e lhe disse: «Senhor Irmão, porque sinto que é necessario dar-se ordem e remedio ás cousas do reino, que estão ora suspensas, eu vos rogo muito que tomeis cuidado de ter em vossa casa conselho: e Vós, e o Infante vosso irmão, com os principaes que aqui são, apontae o que em taes tempos e casos convem que se faça: e trazei-m'o para o vêr, e me acordar comvosco e se fazer o que fôr serviço de Deus, e d'El-Rei meu filho, Senhor, e bem de seus reinos». A qual cousa se poz logo em execução, e se teve conselho, em que foi acordado que aos embaixadores de Castella, que hi eram por despachar, fosse por então respondido, que esperassem a vinda dos grandes do reino, com que El-Rei ordenava de fazer côrtes e ter conselho: e que logo haveriam resposta. E estes embaixadores vinham a El-Rei D. Duarte, e chegaram ao tempo de seu fallecimento; e as pessoas que eram, e o que requeriam, e com que fundamento, ao diante se dirá. Acordaram outrosi, por quanto em Castella começava d'haver movimentos, que pareciam principios de guerra, que os alcaides das fortalezas dos estremos fossem avisados sobre bôa guarda e defensão d'ellas: e assi que se fizesse o geral acostumado chamamento, para o saimento que se havia de fazer na Batalha, e côrtes em Torres Novas. E as cartas, que sobre isto haviam de ir, acordou o Infante D. Anrique com os do conselho, que fossem assignadas pelo Infante D. Pedro; mas elle com mostrança de muita honestidade se escusou: e a Rainha assignou aquellas, e todalas outras até ás côrtes; porque n'ellas se acordou outra ordem de Regimento, como se dirá. E assi tomou cuidado a Rainha de cumprir aquellas cousas do testamento d'El-Rei, que logo cumpriam de se acabar. E de todo o movel que lhe foi leixado tomou para si a capella e reposte, e repartiu as cousas de guarda-roupa e estrebaria por essas pessoas a que lhe parecia razão, e a que mais afeiçoada era: não se esquecendo prover com vestimentas, das roupas e pannos de seda que ficáram, a algumas egrejas e mosteiros, em que sentiu que podia d'isso haver necessidade. CAPITULO V _Como o Infante D. Fernando foi jurado por Princepe, se El-Rei não houvesse filho legitimo_ Estando assi estes Senhores em Thomar, esperando o tempo do saimento e côrtes, foram alli juntas quasi todolas pessoas principaes do reino, com esperança e certidão de futuras mudanças, salvo o Infante D. João, que era doente em Alcacere do Sal, a que por grande resguardo da Infante sua mulher, a morte d'El Rei seu irmão não foi descoberta se não depois que foi retornado em sua saude, a que não fossem contrairas novas para elle tão tristes. E sendo presentes em conselho os Infantes e o conde de Barcellos seu irmão, e o Infante D. Pedro propoz logo primeiro dizendo: «Senhor irmão, e honrados senhores fidalgos que aqui estaes, bem vêdes que a nova idade d'El Rei nosso Senhor assi n'elle, como nos outros meninos, é sojeita a muitos casos e desastres, de que Deus nosso Senhor o guarde e defenda. E porque d'aqui até que sua Mercê tenha idade e desposição para casar e haver filhos, se passará bom espaço de tempo: meu voto é, por sermos fóra d'algumas duvidas que por sua morte em tal tempo podiam sobrevir, que o Senhor Infante D. Fernando seu irmão, seja logo aqui intitulado e jurado por Principe e seu herdeiro, até que a Deus praza de dar a El-Rei nosso Senhor filho que de tal nome se possa intitular, e o sobceda: e n'isto não sómente faremos o que é necessario, mas ainda pagaremos o que devemos a nossa lealdade, e ao grande amor que tinhamos a El-Rei meu Senhor e irmão, e ao que somos certos que nos elle tinha. E este tempo é tal, em que estas obrigações se devem a seus filhos pagar, em todo o que redunda em suas honras, estado e serviço». Acabou o Infante sua proposição, em que não foram necessarias mais razões para suas sinas, para se louvar, e haver por justa e bôa sua tenção. Pelo qual os Infantes e o Conde de Barcellos, e os outros senhores que eram presentes, por si e por todolos do reino logo fizeram d'isto um auto solemnisado por juramento, perante notairos publicos, em cumprimento do qual o Infante D. Fernando se chamou e intitulou por Princepe, até que El-Rei houve filho. CAPITULO VI _Primeiro consentimento da Rainha para El-Rei seu filho casar com a filha do Infante D. Pedro_ A Rainha por este accordo e determinação de que foi certificada, recebeu em sua tristeza muita consolação, e em seus cuidados descanço, e em seus receios grande segurança: especialmente por ser d'ella inventor e principal movedor o Infante D. Pedro, em quem, pelas causas que já toquei, lhe faziam sem causa ter suspeitas, a seus filhos perigosas, e a ella desleaes; como quer que por elle nunca foram cuidadas, nem por alguma obra, nem congeitura fossem sentidas. Pelo qual, como Senhora virtuosa e agardecida a boa vontade e obras que o Infante D. Pedro começára de mostrar, mandou logo a elle o doutor Ruy Fernandes com esta mesagem: «Senhor, diz a Rainha nossa Senhora, que por saber bem o grande amor que vos El-Rei seu Senhor tinha, e o desejo que sempre teve para vossa honra e acrecentamento: e como, em cumprimento de sua tenção leixou dito a Frei Gil de Tavulla, seu confessor, que sua derradeira vontade era, que o Principe seu filho casasse com D. Isabel vossa filha; que assi por cumprir principalmente a vontade d'El-Rei seu Senhor, como por vos mostrar com obras de vossa honra e contentamento, o contrairo do que por ventura vos fazem d'ella crêr: e des-hi, porque vê que é este um dos melhores casamentos do mundo que a El-Rei seu filho, Senhor, agora melhor pode vir, lhe apraz que este casamento logo entre ambos se faça; e que para isso vos envia por mim seu consentimento, que por ventura atégora haverieis por duvidoso, e não tão certo.» CAPITULO VII _Resposta do Infante D. Pedro á Rainha_ O Infante, como ouviu este recado, em que viu o cabo de sua bemaventurança, com o coração cheio de alegria, e os olhos por isso não vasios de lagrimas, disse: «Doutor amigo, dizei á Rainha, minha Senhora, que lhe beijo as mãos por tamanhas duas mercès, como em sua embaixada me mandou offerecer: cá uma, de sua Senhoria haver por bem que este casamento se faça, é a maior que para mim pode ser. E a outra não na estimo em menos; pois se lembrou de m'a fazer sem meu requerimento. E que álem da paga principal que n'isso recebe de suas muitas virtudes, prazerá a Deus que eu a servirei por maneira que se não arrependa d'este seu proposito: mas que por agora me não parece tempo conveniente para isso, assi por a pouca idade d'El-Rei meu Senhor, em que se não perde tempo, como pela tristeza geral, em que com tanta razão todos seus vassallos estamos; e que sua Senhoria haja por bem que isto se alargue mais alguns dias, nos quaes se procurará a dispensação que se requer, e o povo perderá parte d'este sentimento, e se poderá fazer então melhor e com mais honestidade, e com aquellas cerimonias e festas que se a taes pessoas deve.» CAPITULO VIII _Contradicção que houve em algumas pessoas no consentimento do casamento d'El-Rei com a filha do Infante D. Pedro_ O consentimento e prazer da Rainha ácerca d'este casamento, não foi egualmente recebido nos corações de todos os que alli eram: cá uns o aprovavam com prazer e sem paixão, e outros com tristeza, odio, inveja e cobiça, o não podiam padecer. E entre alguns d'estes que hi havia, o principal, diziam, que era o conde de Barcellos, a quem parecia que da conclusão e outorga d'este casamento pesava muito. E, como quer que em publico o não contradissesse, procurava porém secretamente, por meio do Arcebispo D. Pedro, de Lisboa, a quem a Rainha dava muita fé, e não tinha boa vontade ao Infante D. Pedro, como do que ácerca d'este casamento lhe tinha prometido, ella se desdissesse, com fundamento de trabalhar com toda sua possibillidade que El-Rei casasse com sua neta, D. Isabel, filha maior do Infante D. João; porque o conde de Barcellos, como já disse, foi filho natural d'El-Rei D. João, e teve tres filhos legitimos da filha do Condestabre D. Nuno Alvares Pereira, com quem primeiro casou: saber D. Affonso, conde d'Ourem; e D. Fernando, conde d'Arrayolos: e a Infante D. Isabel, mulher do Infante D. João; e por falecimento da filha do Condestabre casou com D. Costança de Noronha, filha do conde de Gyam e irmã d'este Arcebispo, que elle com razão amava muito; porque n'ella havia assaz de virtudes e fremosura e outras bondades, porque o bem merecia: e d'ella não houve filho nem filha, e por seu respeito o conde de Barcelos amava muito todas suas cousas d'ella, e em especial seus irmãos, entre os quaes o principal era o Arcebispo, asi por sua idade maior, como por sua denidade; e por isso o conde fiava d'elle, e lhe encarregava a estorva d'este casamento d'El Rei com a filha do Infante D. Pedro: e não falleciam outros que o n'isso assaz ajudavam. Da qual cousa o Infante por seus meios foi logo avisado: e como era prudente e discreto, não lhe esqueceu o que geralmente se crê e afirma da inconstancia e pouca firmeza que muitas mulheres por sua natural condição tem, quão ligeiramente se movem. Pelo qual, por segurar o passado, foi logo fallar á rainha, pedindo-lhe com palavras em que havia muita razão e honestidade, que da mercê e consentimento que lhe tinha prometido ácerca do casamento d'El-Rei com sua filha, lhe desse uma certidão e segurança assignada por ella; do que a Rainha muito aprouve, e encommendou ao Infante que a fizesse, como fez, em um Alvará, na fórma que cumpria: e Ella o assignou e lh'o deu, que o tivesse. CAPITULO IX _De como se fez o saimento d'El-Rei no mosteiro da Batalha_ El-Rei e o Principe seu irmão, e a Rainha e Infantes, e outros muitos prelados e condes, e senhores do reino, partiram de Thomar para o mosteiro da Batalha no fim do mez d'Outubro, que era o termo, a que as gentes, para o saimento d'El-Rei, se haviam n'elle de ajuntar, e des-hi para as côrtes em Torres Novas, e por estas ceremonias de saimentos, que aos Reis e Princepes, depois de suas mortes, em suas reaes sepulturas se fazem, serem tão geraes e tão costumadas em Espanha e assim n'estes reinos de Portugal, que pela mór parte todos hão d'ellas noticias e informação: por fugir o vicio e avorrecimento da proloxidade, a mim pareceu escusado descreve-lo aqui particularmente, e sómente abaste brevemente saber que na pompa e cerimonias de suas exequias se guardou e cumpriu todo o que ao estado de um tão alto Principe em tal auto cumpria; e nos bureis e lutos dos corpos de todos, e nas lagrimas geraes de todolos olhos, e na commum tristeza de todolos rostos, em todo o reino claramente parecia quanto em sua vida era de todos amado, e a grande perda e desamparo que, por sua morte e pelo perder, todos recebiam. CAPITULO X _Como ante de se fazerem as primeiras côrtes em Torres Novas, se fez uma conjuração contra o Infante D. Pedro_ Acabado o saimento, assi como alli eram juntos, assim se foram todos a Torres Novas, onde por dar logar que alguns alcaides e outras pessoas acabassem de vir, para fazer as menagens e dar a obediencia a El-Rei, sem se começarem as côrtes se passaram alguns poucos dias: nos quaes por meio principalmente de Vasco Fernandes Coutinho, marechal, que depois foi primeiro conde de Marialva, foram liados por juramento contra o Infante D. Pedro casi todolos fidalgos do reino, em que entravam, por mais principaes, o Arcebispo D. Pedro, e D. Sancho seu irmão, e o priol do Crato D. Frei Nuno de Goes; os quaes juntos secretamente em uma egreja, o marechal, como quer que outros hi estivessem de mór valor e auctoridade, elle para os mais commover a seu proposito, porque tinha para isso audacia, lhe fez uma falla com largas razões, cuja sustancia foi: «Que o regimento do reino e criação d'El-Rei e seus irmãos por disposição do testamento d'El-Rei ficára, como sabiam, que não saisse do poder da Rainha; o que elles deviam requerer e procurar que se cumprisse; assi por ser razão, como por a Rainha ser mulher estrangeira, da qual por se mostrarem em favor de seu serviço e tenção sempre receberiam honra, favor, mercê e acrecentamento; e por isso deviam trabalhar que não viesse em maneira alguma ao Infante D. Pedro, de cujos rigores e mostranças suas falsas, que fazia ao povo, de justo e sã conciencia, não podiam receber se não o contrairo; e que isto lhes seria facil de fazer; porque por parte do Infante D. Pedro, quando muito podesse ser, seria povo e gente meuda, que sem cabeceiras não teriam forças nem dariam ajuda, e que por a sua d'elles eram os que estavam presentes com outros muitos que logo seriam com elles; e mais cria do Infante D. Anrique, e sabia do conde de Barcellos, que seriam em sua ajuda, pedindo-lhe em conclusão, que o houvessem todos assi por bem, e o affirmassem, e segurassem com juramento.» Do que a todos aprouve, e o poseram em escripto, que logo juraram. Mas, como quer que n'isto entrassem grandes homens, e de muita auctoridade, porém seus signaes e juramentos tiveram d'hi a pouco pouca firmeza; todos os mais se desdisseram e acostaram á banda do Infante D. Pedro e dos outros Infantes que foram com elle; porque n'aquelle tempo todo o reino finalmente estava á vontade e disposição dos filhos e netos d'El Rei D. João. E d'este ajuntamento assi jurado, que á rainha logo foi notificado, porque confiou n'elle muito mais do que devera, se lhe seguiu todo seu damno, perda, desassocego, e emfim a morte, não como a seu estado cumpria; porque crendo, que n'estes para seus feitos haveria a firmeza que juraram e lhe prometteram, não se contentou no principio d'estes movimentos d'alguns meios bons e honestos, que lhe foram apontados; do que a ella pelos não acceitar se seguiu muito mal, e ao reino, e a muitos d'elles pouco bem, como se dirá. CAPITULO XI _Como se deu a obediencia e fizeram as menagens a El-Rei e se praticou sobre quem regeria_ Assignado o dia da proposição das côrtes, El-Rei teve seu estrado e Real Estado em uma pequena praça, que se faz ante a egreja de Santiago d'aquella villa, onde todolos senhores e officiaes e procuradores dos povos postos em sua costumada e antiga ordenança, começou e fez arenga, que para tal auto se requere e costuma, o doutor Vasco Fernandes de Lucena, mui elegante e cheia de mui dôces palavras e graves sentenças para aquelle caso da obediencia; e com necessarias e vivas razões exortou todolos que eram presentes para a fazerem; como a arenga foi acabada os Infantes primeiro, e des-hi os condes e os outros senhores deram logo suas menagens e obediencias a El-Rei, segundo sua boa e devida lealdade; e começaram logo de mover sobre quem teria o regimento do reino, que das côrtes era o ponto mais sustancial, no que houve entre todos grandes desvairos; porque os mais se mostravam segundo opinião das parcialidades que tinham, justificando cada uns suas tenções, e aos menos, que haviam respeito ao bem commum e assessego do reino, não eram recebidos nem ouvidos seus meios. CAPITULO XII _Concordia feita entre a Rainha e o Infante D. Pedro acerca do regimento_ E porque a competencia e deferença do regimento não era principalmente salvo entre a Rainha e o Infante D. Pedro, a Rainha, como senhora, que de sua virtuosa condição desejava todo o bem e assessego, sentindo os malles e damnos que d'estas diversões se podiam seguir, pelos atalhar com alguma justa concordia, enviou rogar ao Infante D. Pedro por meio do Infante D. Anrique, que lhe fosse falar: do que o Infante foi muito alegre; e, escolhendo para isso tempo conveniente, satisfez logo a seu requerimento: e, sendo ambos sós apartados, a Rainha lhe disse muitas rasões sobre o desvairo do regimento, em que bem pareceu que havia n'ella muita virtude, sã conciencia e grande discrição e justo juizo, concluindo que lhe rogava que ambos sem outro meio se quizessem sobre isso concordar. O Infante D. Pedro, como era Principe justo, bom, e temente a Deus, foi de suas palavras assaz contente; e com outras de grande reverencia e acatamento lh'as teve muito em mercê; e depois d'alguns meios, sobre que entre si debateram, finalmente foram acordados d'esto: «Que com a Rainha ficasse o cargo da criação de seus filhos, e com a governança e ministração de toda a fazenda; e ao Infante ficasse o regimento da justiça e o titulo de defensor dos reinos por El-Rei.» O qual meio, por muitas rasões, que entre si praticaram, houveram por justo e razoado; e mostraram ambos ser d'elle muito contentes. CAPITULO XIII _Da contradição e mudança que houve n'este acordo_ Fez-se este acordo entre estes senhores pela manhã, no qual dia os que eram ajuramentados, em especial o Arcebispo de Lisboa, por meio de seus meios, que dentro trazia, souberam logo da falla que a Rainha e o Infante houveram; e, como ficaram ambos d'acordo, do que lhes muito pesou, e em especial se disse, que desprouvera muito ao conde de Barcellos, que desejava e procurava entre elles haver desacordo, por se não aceitar o casamento de El-Rei com a filha do Infante, esperando com a vinda do Infante D. João á côrte, que El-Rei casasse com sua filha, como atraz se tocou. E ao outro dia, sendo ante a Rainha juntos alguns d'estes Principaes seus servidores, lhe perguntáram em que maneira se concordára com o Infante. E a rainha lhes disse que era bem concordada; e que por assi ser dava graças a Deus, dizendo-lhe logo a concordia em que ficaram, e as causas e razões porque ella devia ser, e era d'isso contente. A qual cousa lhe logo todos desdisseram; e que fôra n'isso muito enganada, e seu estado muito abatido; e que ainda errára fazer nada em cousa semelhante sem primeiro lh'o fazer saber, ao menos para a aconselharem, afeando tal concerto com razões e inconvenientes assi córados, e tão aparentes, que a Rainha, vencida d'elles, creu que em fazer tal acordo não podera fazer cousa em todo mais errada. Pelo qual logo alli lhe fizeram tomar outra determinação contraira á em que ficára com o Infante; e que todavia se afirmasse ella só reger sem outra ajuda; e, quando não podesse com alguma parte do regimento, que de sua mão a désse e encarregasse a quem sentisse que havia de servir e fazer sua vontade. O que não ficou logo por saber ao Infante D. Pedro. CAPITULO XIV _Apontamentos que publicamente se fizeram contra o testamento d'El-Rei para a Rainha não dever reger_ Com esta volta que a Rainha fez do proposito e acordo em que ficára com o Infante, começaram outra vez as differenças e debates entre os grandes e povo sobre o regimento. A Rainha com os de sua parte requeriam para ella toda a governança em solido, assi como no testamento d'El-Rei ficára determinado: os povos geralmente com outros da parte do Infante D. Pedro requeriam o regimento para elle só sem outra ajuda nem companhia, allegando que a Rainha por muitas razões não devia reger; e d'este voto foram Pedro de Serpa, e Vicente Egas, cidadãos e procuradores de Lisboa, homens honrados, bem entendidos, e de grande autoridade. Os quaes altercando sobre estes debates perante El Rei, como quer que era menino, quando um e quando o outro lhe disseram: «Muito alto e poderoso Principe, Rei nosso Senhor, porque nos parece que acerca de se regerem estes reinos por vós, sois requerido que cumprindo o testamento d'El-Rei vosso padre, que Deus haja, deis inteiramente o regimento á Rainha nossa Senhora vossa madre, nós, como procuradores da vossa cidade de Lisboa, e assi em nome dos outros procuradores que aqui são, nossos irmãos, dizemos que sob reverencia de vossa real pessoa, El-Rei vosso padre não podia fazer tal testamento; nem em tal caso leixar Regedor do reino á sua disposição; porque a nós vosso povo pertence por direito enleger quem por defeito de vossa madura edade nos haja por Vós de defender com as armas e reger por leis com justiça. E isto não aggrava vossa legitima sobcessão; nem mingúa em vossas lealdades; cá por serdes seu filho maior legitimo, e barão, nós alegremente vos reconhecemos e recebemos por nosso verdadeiro Rei e Senhor; e com ajuda de Deus vos guardaremos aquella lealdade, fé, e amor, que bons, leaes vassalos devem a Senhor; mas quanto a enleger Regedor, até que Vós sejaes em edade para nos por vós regerdes, nós buscaremos e enlegeremos quem em vosso nome nos haja de reger e governar; porque asi como a nós sómente pertence enleger Rei, se a real e legitima sobcessão dos Reis d'estes reinos por algum caso, o que Deus não queira, se destinguisse, e se não guardaria em tal caso o testamento, nem disposição do Rei postumeiro; assi pertence a nós enleger agora Regedor por Vós; e para serdes servido abasta que nós o enlejamos tal, que seja natural, e do vosso real sangue, e não estrangeiro, e em que haja virtudes, saber, e conciencia, e sobre tudo lealdade, a que se não deva poer suspeita. E vossa mui Real Senhoria, guarde-nos nossa justiça e liberdade, como esperamos, no que recebereis muito serviço: e nós vossos vassalos com vossos reinos receberemos mercê, proveito e assessego, que deveis desejar: e assi o pedimos a vós, mui illustres Infantes e magnificos condes; e requeremos a vós, honrados senhores, e leal povo de Portugal, que aqui sois juntos para celebrar estas reaes côrtes, que assi juntamente o peçaes e requeraes que se faça. No cabo d'esta falla, assi como os corações dos que a ouviram eram desvairados, assi não houve rostos nem consentimentos eguaes; e por isso não cessáram os primeiros debates do Regimento, os quaes, como sómente eram entre a Rainha e o Infante, como disse, alguns por assessego apontavam que ambos fossem exclusos de reger, e enlegessem outros; outros diziam, mas que ambos regessem juntamente n'aquella parte que a cada um bem coubesse; outros tinham que a Rainha sómente tivesse o Regimento; e outros o davam inteiramente ao Infante: e a esta parte se inclinavam mais os povos; e a cada uns para execução de seus votos não falleciam autorizadas razões. CAPITULO XV _Do meio que o Infante D. Anrique tomou entre a Rainha e o Infante D. Pedro ácerca do Regimento_ O Infante D. Anrique era a estas differenças presente, e como virtuoso meio trabalhou de as poer em alguma temperança: e posto que alguns tiveram que elle fôra sempre mais inclinado á parte da Rainha que á do Infante; porém, passados quinze dias d'apontamentos e conselhos, foi feita por acordo do Infante D. Anrique, e dos outros do conselho e procuradores do povo uma determinação por maneira de Regimento, que se denunciou em publico ajuntamento por Nuno Martins da Silveira, escrivão da puridade, cuja sustancia foi: «Que a Rainha ficasse por tetor e curador d'El-Rei seu filho com a ministração das rendas e officios; e o Infante D. Pedro tivesse cargo da defensão do reino com titulo de defensor, e o conde d'Arrayollos, filho do conde de Barcellos tivesse cargo da justiça; e que na côrte, onde El-Rei estivesse, andassem sempre seis do conselho repartidos a tempos, e mais um prelado e um fidalgo, e um cidadão; e na côrte outros alguns sem especial necessidade não podessem andar: e que com estes seis do conselho e tres dos estados se determinassem todas as cousas que sobreviessem com autoridade da Rainha e acordo do Infante D. Pedro, estando sempre pelas mais vozes. E sendo caso que seus votos fossem em desvairo por egual, que o notificassem então aos Infantes e condes; e que segundo as mais vozes fosse o negocio da duvida determinado». E as repartições d'estas cousas, em que estes senhores haviam de ter cargo, eram assi limitadas, que muito poucas, e de pequena sustancia podia cada um em seu cargo, por só determinar. Foi mais ordenado «que em cada um anno se fizessem côrtes, ás quaes não viessem mais que dois prelados e cinco fidalgos, e oito cidadãos, e n'ellas se determinassem as duvidas que os do conselho por si não podessem concludir, ou algumas outras em sustancia assi especiaes, que para aquelle tempo devessem ou podessem ser reservadas, assi como mortes de grandes homens e privação d'officios grandes, e perdimentos de terras, e corregimento ou fazimento de leis e ordenações; e que nas côrtes vindoiras sempre se podesse correger e emmendar qualquer defeito ou erro que houvesse nas passadas.» Com outras particularidades, cuja mais expressão não é necessaria. E n'este accordo cuidou o Infante D. Anrique que, se o Infante D. Pedro o assignasse e consentisse, que levemente acabaria com a Rainha que tambem assi o fizesse; mas ella, a que o dito acordo foi primeiro mostrado, por induzimentos de não verdadeiros e sãos conselheiros o denegou fazer, querendo que o Regimento lhe fosse dado inteiramente, e que ella de sua mão daria d'elle a parte que quizesse a quem lhe bem parecesse. E o Infante D. Pedro, como quer que mostrasse do dito acordo sentimento, por lhe ser n'elle mui limitada e adelgaçada a parte do reino que havia de reger, porém por assessego disse: «que faria o que o Infante seu irmão quizesse». Mas o Infante D. Anrique, vendo tão forte o proposito da Rainha, houve o feito por descordado de todo. De que o povo foi logo sabedor, e posto em grande alvoroço contra a tenção da Rainha, e de seguirem a do Infante D. Pedro, qualquer que fosse. Ao qual os povos por Lopo Antonio, que depois foi escrivão da puridade, fizeram saber «que estavam para seguir o que elle ordenasse, affirmando que elle só sem outrem havia de reger.» A Rainha por os de sua parcialidade, que d'este alvoroço foram logo sabedores, foi conselhada que para o atalhar, como cumpria a seu serviço e honra, e bem do reino, convinha que logo assignasse o accordo, e não parecesse que por sua parte ficava; á Rainha prouve fazel-o, e mandou logo chamar o Infante D. Anrique, em cujo poder era o Regimento, e o assignou, e ordenou que os Infantes e os outros prelados e condes, e procuradores, o assignassem e jurassem juntamente, o que todos fizeram em um altar, perante notairos publicos, salvo o arcebispo D. Pedro, que não quiz por não ficar o Regimento _in solido_ á Rainha. Mas cada um que assignou e jurou, fez assi seu juramento, e só escreveu seu signal com taes cautellas e palavras, que bem parecia querer leixar a sua disposição fazer sempre depois o que quizesse, sem parecer que o quebrantava. CAPITULO XVI _Como a Rainha por meio do conde de Barcellos enviou pedir ao Infante D. Pedro o alvará que lhe tinha dado sobre o casamento d'El-Rei_ O conde de Barcellos, como quer que assignou este Regimento, não foi porém d'elle satisfeito, por lhe não ficar n'elle alguma parte; e como homem que para acrecentar por qualquer maneira seu nome e proveito, teve sempre grande cuidado, desejando que todavia o casamento d'El-Rei com sua neta se fizesse, vendo que o alvará que a Rainha tinha dado ao Infante D. Pedro lhe era para isso grande embargo, ordenou por si e por outros de sua tenção que a Rainha com razões obrigatorias com que a moveram, mandasse pedir o alvará ao Infante D. Pedro. A qual como quer que, como virtuosa o refusasse, por não quebrar sua verdade, e mais a determinação d'El Rei D. Duarte seu marido; porém como importunada e induzida lh'o fizeram consentir. E, porque algum dos outros que eram n'este acordo, não ousou de ir em nome da Rainha ao Infante pedir-lhe o alvará, o conde de Barcellos acceitou o cargo, e foi ao Infante, e lhe disse: «Senhor, a Senhora Rainha vos manda dizer que sabeis, que vos tem dado um alvará sobre o casamento d'El-Rei nosso Senhor, seu filho com vossa filha; e por quanto este caso é de tamanho peso e importancia, que o não devera passar sem accordo e conselho dos principaes do reino, a que tambem toca; e agora por estes movimentos não é, nem póde n'isso entender, vos roga que lhe mandeis o alvará, e que sobre isso terá a maneira que vir que cumpre, fallando primeiro com nós outros, de quem sabeis que não ha de sahir, salvo cousa que seja vossa honra e acrecentamento.» O Infante lastimado da embaixada e avisado de sua destruição, d'onde nacia, a que fim vinha, disse: «O alvará que dizeis, é em meu poder; e eu, se quizesse, justa e honestamente podia denegar á Senhora Rainha a entrega d'elle; porque não sei como o que por El-Rei meu Senhor e irmão me foi outorgado, e por ella depois a mim lembrado, requerido e outorgado, se me póde revogar sem causa; bem creio que em suas virtudes haveria firmeza de cumprir o que promette, e mais em cousa tão justa e tão honesta, se a não movessem d'ella conselheiros pouco fieis, no que lhe fazem pouco serviço; porém, porque não pareça que eu por força quero, nem tomo, o que com razão me devia ser requerido e dado, dae a sua Senhoria seu alvará, e irá roto, e não são a seu poder, em testemunho da quebra de sua verdade, que me quebrou.» E logo o tirou de um cofre, e o rompeu, e roto o entregou ao conde. CAPITULO XVII _Como El-Rei se foi a Lisboa, onde o Infante D. João veiu a primeira vez_ Um mez e alguns dias mais duraram as côrtes em Torres Novas, em fim das quaes, por ser o anno de mantimentos mui esteril, e aquella comarca mui cara, acordou a Rainha e os Infantes de se irem, como foram, com El-Rei para Lisboa, onde, por via do mar com industria e aviamento de bons regedores, se buscou razoado provimento, que deu causa serem hi os mantimentos em menos careza, que em alguma outra parte do reino. O Infante D. João, depois de convalescido da doença de que já se disse, soube do fallecimento d'El-Rei seu irmão, de que sobre todos seus irmãos mostrou ser mais anojado e não era sem razão; porque por fallecimento da Rainha D. Filippa, sua madre, o Infante D. João e Infante D. Fernando ficaram pequenos; e El-Rei D. João recolheu para si o Infante D. Fernando, que era mais moço; e deu o Infante D. João a El-Rei Duarte que o criou e amou sempre, como proprio filho: e por esta criação, que com elle teve, álem da geral e natural divida d'El-Rei e irmão lhe devia o Infante D. João, sentiu sobre todos sua morte; porque vindo ante a presença d'El-Rei e da Rainha, depois da obediencia e reverença devida, suas continuas lagrimas e dorosas palavras davam claro testemunho do sentimento de seu coração pela morte d'El-Rei. E ali em publico fez logo uma falla á Rainha de grandes offerecimentos, de a servir e amar mais que nunca, com palavras de muita discrição e amor, e acatamento, em que tambem com razões evidentes lhe tocou, que lhe parecia que se não devia antremeter no regimento do reino; e que assi como esta havia de ser sua tenção, assi seria tambem que em todo o mais sua honra, estado, acatamento e serviço se guardasse por todos o mais inteiramente, do que se nunca guardára a outra Rainha; do que ella não foi contente, e muito menos os da sua tenção, que eram presentes: e porque isto foi dito de praça, logo o rumor d'isso sahiu pela cidade, com que os povos e a gente d'ella principalmente começaram de se alvoroçar e praticar entre si secretamente, como tirariam o Regimento á Rainha. CAPITULO XVIII _Do despacho que se deu aos embaixadores de Castella_ Os embaixadores de Castella, que eram na côrte, como se atrás disse, pelos desvairos que sobre o Regimento houve em Torres Novas não foram ouvidos, nem despachados até Lisboa, onde juntos á Rainha e Infantes com os deputados do conselho deram sua embaixada, a qual, por ser desgosto d'este reino, se crê que tardou tanto em se ouvir; porque já a sustancia d'ella seria revelada. Requereram em nome d'El-Rei D. João o segundo, que então reinava em Castella, que as egrejas que pela Cisma então foram tiradas aos bispados de Tuy e Badalhouce, e eram regidas por administradores, se tornassem a seus proprios prelados. Outrosi que os mestrados d'Aviz, e Santiago d'estes reinos tornassem um á Ordem e obediencia de Calatrava, e o outro á de Santiago de Castella, cujos membros foram, e que os titulos ficassem, como eram, e as enlições se fizessem cá; mas as confirmações d'elles se houvessem pelos superiores de Castella. Requereram outrosi que alguns bispados d'estes reinos reconhecessem superioridade ao arcebispo de Sevilha, como Metropolitana sua, que sempre fôra. E assim apontaram sobre tomadias de navios, que se fizeram, requerendo restituição, apontando e allegando sobre cada uma d'estas cousas muitas razões e fundamentos de direito: porque entre elles era um grande doutor de direitos. Ouvida esta embaixada, em que tambem os embaixadores tocaram aggravos de sua tardança, houve sobre o despacho d'elles grandes divisões, segundo os votos de cada um; porque a uns parecia bem responder-lhe manso, poendo a defesa d'esto em razões de direito; e a outros parecia que no esforço e confiança d'armas e valentes corações; e finalmente foi havido então por melhor acordo envia-los, como enviaram, sem alguma certa resposta, escurando-se com os movimentos, torvações e pouco assessego que pela morte d'El-Rei ainda no reino havia; e que El-Rei, depois d'haver em todo seu conselho, enviaria logo a El-Rei de Castella a resposta com sua embaixada. E o que d'estes requerimentos se pôde logo saber, foi que não nasceram da propria vontade d'El-Rei, em cujo nome vinham; mas dos Infantes d'Aragão, seus cunhados, que então picavam com elle, e governavam o reino, com fundamento de meter este reino em necessidade, e elles por seus meios e com sua privança o remedearem, e esperando que por isso carregariam maior obrigação a El-Rei de Portugal e a seus reinos e vassalos, para as necessidades suas, em que esperavam de se vêr, como viram: por quanto fizeram então lançar fóra d'El-Rei de Castella e de sua côrte o condestabre D. Alvaro de Luna, grande poderoso, e muito seu imigo. CAPITULO XIX _Como a Rainha começou de reger e ser em seu regimento prasmada_ A Rainha regia o reino, e tinha El-Rei em seu poder, e por seu aio Nuno Martins da Silveira: e como ella era de boa e virtuosa tenção tomava o encarrego do Regimento com mais trabalho e continuação do que tivera em costume, nem requeria sua fraca desposição; e des-hi os requerimentos assi pela boa ordem que se logo deu ao ouvir d'elles, como por haver já dias que se não despachavam, cresciam cada vez mais; o que cada dia, além de ser prenhe, lhe causava dôres e enfermidades, que contrariavam seu bom e verdadeiro proposito; e, sendo com razão aconselhada que temperasse seu grande trabalho, e entrepozesse nos negocios alguns dias para seu repouso e descanso, ella constrangida já de suas proprias necessidades o começou de fazer, não sem reprensões do povo, com que indevidamente logo começaram a acusar sua innocente fraqueza, e queriam asolver seus muitos e desordenados requerimentos, e incomportaveis importunações. Pelo qual alguns se atreviam já havendo por serviço de Deus e d'El-Rei e bem do reino de cometer ao Infante secretamente que tomasse o Regimento de todo; mas elle, ou por sua dissimulação, ou por ser assi sua vontade, a todos tirava de tal esperança; antes em taes cousas assi se fazerem, posto que melhor se podessem e devessem fazer, sempre escusava as fraquezas e innocencia da Rainha com quanto podia. CAPITULO XX _Fallecimento da Infante D. Filippa_ N'este anno de mil e quatrocentos e trinta e nove, no mez de Março, porque começaram de morrer em Lisboa, e se finou de pestenença a Infante D. Filippa, de onze annos, filha d'El-Rei D. Duarte e da Rainha sua mulher, El-Rei e o Principe se foram a Almada; e a Rainha se foi a uma quinta junto com Santo Antão, que se chama Monte Olivete. CAPITULO XXI _Nascimento da Infante D. Joana_ E alli pariu a Infante D. Joana, que depois foi Rainha de Castela, e lhe vieram novas como o Infante D. Pedro, seu irmão mais moço, fôra morto em Italia de uma bombardada, estando com El-Rei D. Affonso seu irmão, em cerco sobre a cidade de Napoles. E assi veiu á Rainha n'este anno uma carta consolatoria do Papa Eugenio, confortando-a sobre a morte d'El-Rei seu marido, e amoestando-a que por alguma maneira se não desse a cidade de Ceuta por a soltura do Infante D. Fernando, allegando-lhe para tudo razões santas e catholicas quanto a Deus, e de muita honra e louvor para este reino. CAPITULO XXI _Praticas que o Infante D. Pedro teve sobre descontentamentos que tinha da Rainha ácerca do Regimento_ No mez d'Agosto d'este anno de mil e quatrocentos e trinta e nove, a Rainha se foi da quinta de Santo Antão para Sacavem: e o Infante D. Pedro ficou com El-Rei em Lisboa, onde fallando com D. Alvaro Vaz d'Almada, capitão mór do mar, e com outros de que se fiava, disse: «Que por quanto n'esta parte do Regimento que aceitára, segundo era pequena, e a Rainha se havia soltamente em todo, e defamava a elle e todas suas cousas, elle recebia grande abatimento: sua vontade era, por muitas razões que apontou, leixar aquelle pequeno cargo que lhe fôra dado, e ir-se para suas terras: e que porém queria saber que lhes parecia». No que por seus conselheiros houve votos desvairados, cá uns tinham que emprendesse e tomasse o Regimento de todo: e outros que se contentasse com a parte que tinha, e se são fosse: outros que leixasse tudo e se fosse: e a cada um não falleciam razões assaz aparentes para justificar seu parecer. E finalmente foi acordado que d'estas seguisse a parte que ao Infante D. João melhor parecesse; porque era de crêr que á sua seria o Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e assi seus filhos os condes d'Ourem e d'Arrayollos. CAPITULO XXII _Como o Infante D. Pedro e o Infante D. João ambos se viram e fallaram sobre o Regimento_ Pelo qual o Infante D. Pedro enviou pedir ao Infante D. João, que era em Alcohete, que se vissem, como viram logo ambos, no Oratorio de Santa Maria do Paraiso, em que se depois fundou e mudou o mosteiro de Santos da Ordem de Santiago. E porém ante da ida do Infante D. João, elle primeiro foi avisado do capitão Alvaro Vaz, como de si mesmo, da tenção porque o Infante D. Pedro se queria com elle vêr. Alli os Infantes se apartáram sós, onde o Infante D. Pedro com largo recontamento propoz a tenção em que era de leixar a parte do Regimento que tinha: como era aconselhado pelo contrairo, apontando as causas e razões em que uns e outros se fundavam: e que porém lhe pedia que n'isso o aconselhasse; por que na confiança que tinha de seu saber e certidão de amor, que entre elles havia, sua vontade era seguir o que a elle melhor parecesse. O Infante D. João lhe respondeu: «Senhor irmão, ante d'isto eu tinha já n'este caso assás consirado; e, porque mui em breve vos responda, sabei que se chamais erro acceitardes o Regimento, como sois aconselhado, não sei cousa que possaes acertar, cá se vós nascereis primeiro e vos não fizera Deus tão bom e tão prudente como soes, e assi ao Infante D. Anrique nosso irmão, crêde que eu requerêra o Regimento para mim; e se m'o não quìzerem dar, eu o tomára ou morrêra sobre isso; porque com quanto a Rainha é mui virtuosa e mui discreta e amiga de Deus, nunca vi mór vergonha e abatimento nosso, que sermos regidos por ella; pois é mulher, e mais estrangeira». O Infante D. Pedro lhe respondeu: «Senhor irmão, bem vejo o que dizeis ter fundamento de muita razão, se por todos se quizesse assi consirar com juizos livres de paixão; mas como n'este caso haja propositos e tenções desvairadas, tenho receio nascer d'ellas alguma divisão, que a qualquer reino grande faria perder, quanto mais a este de Portugal tão pequeno, que sem sua destruição não padece algum desacordo; e por elle ser a herdade em que nascemos e que nos criou, e porque nosso padre tanto sangue espargeu, e tanto trabalhou pela conservar e manter, eu sentiria em egual de morte para mim ser eu causa de sua perdição: verdade é que, se com prazer de todos e sem alguma divisão se podesse fazer, logo por serviço de Deus e d'El-Rei meu Senhor, e bem de seus reinos e minha honra, folgaria aceitar este cargo.» O Infante D. João lhe disse: «A divisão e desacordo do reino que temeis, não querendo vós usar do Regimento, não se escusa se a Rainha com estes que agora esforçam sua tenção o reger; porque elles n'esta contrariedade que seguem não hão respeito a algum amor que tenham á Rainha, nem menos ao reino em que vivem, mas sómente por segurarem e escaparem os castigos de seus erros passados, e d'outros, se os fizerem; e para com achaque de necessidades fingidas tomarem causas de pedirem e encurtarem o patrimonio real e acrecentarem o seu; e por esta conta, que é verdadeira, a justiça e a fazenda do reino, em que consiste toda sua sustancia, cairiam com elle de necessidade na perdição que temeis: e além de o cuidado e trabalho de reger ser incomportavel ás forças da Rainha, hei ainda mais por principal inconveniente o Regimento d'este reino ficar só á sua disposição esta vinda dos Infantes de Aragão, seus irmãos, a Castella; porque, como são homens amigos de novidades, e tem no mesmo reino grandes competencias, certo é que se hão de favorecer com este, e poer muitas vezes as gentes d'elle em perigo; e as rendas em despesa por sua ajuda e favor: assi que por estas razões e inconvenientes, que em vós regendo todos cessam, meu conselho é que vós todavia rejaes: e quando o vós não quizerdes ou não poderdes fazer, que o faça o Infante D. Anrique nosso irmão; e des-hi eu, se o caso a isso chegar, e da divisão que tocaes, não tenhaes receio; porque o Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e seus filhos, os condes d'Ourem e d'Arrayllos, que são as pessoas principaes do reino, seguiriam em tudo nossa tenção, quanto mais esta, em que ha tanta necessidade, justiça e honestidade: e se d'alguma parte devem de esperar honra e interesse, em vós a terão mais certa: e por tanto eu me affirmo que todavia deveis reger; e que logo o declareis; e nas côrtes que se ora hão de fazer ácerca d'isso, eu darei e susterei a voz por vós: e não sinto alguem tão ousado, que m'a ouse contrariar.» O Infante D. Pedro finalmente disse: «Que seu parecer era, que por então não devia ácerca d'isto fazer altercação nem mudança alguma; porquanto até ás côrtes havia ainda bom espaço de tempo, no qual poderia ser que a Rainha mesma cansaria n'este cargo, e não se sentiria desposta para elle, e seria contente d'algum tal meio, porque cessassem odios e escandalos entre elles, e o reino seria regido em outro bom assessego, como desejava.» E n'este acordo ficaram; e o Infante D. João se tornou a Alcochete; e o Infante D. Pedro se foi a Camarate, junto com Sacavem. CAPITULO XXIII _Como a Rainha lançou fóra de sua casa certas donzellas, por suspeitas a ella, e affeiçoadas ao Infante D. Pedro_ A Rainha estava em Sacavem com El-Rei e seus filhos, onde seu coração não tinha repouso com novas de mudanças e alvoroços, que se em Lisboa cada dia moviam, de que logo era avisada por pessoas que por isso esperavam haver com ella mais graça, e pelas cousas que lhe faziam crêr, ella começou d'haver e declarar por suspeitas e contrairas a si mesma todas cousas do Infante D. Pedro; pelo qual com palavras irosas, e que não cabiam em sua prudencia, mansidão e virtudes, lançou fóra de sua casa duas donzellas, filhas de Izabel Gomes da Silva, mulher de Pero Gonçalves, vedor da fazenda, e filha de João Gomes da Silva, e irmã d'Aires Gomes da Silva; e assi não consentiu em sua casa outra donzella, filha de João Vaz d'Almada, sobrinha do capitão, por serem pessoas do Infante D. Pedro: o que a Rainha fez por induzimentos alheios sem aquelle resguardo e bom conselho, que a seu estado e serviço cumpria; porque o lançar d'estas donzellas fez contra ella grande escandalo na cidade de Lisboa, por serem dos naturaes e principaes d'ella, e assi por se declarar imiga do Infante D. Pedro, que do povo era mui amado; porque até li sua desavença d'ambos podia jazer em suas vontades; mas sua rotura não se dizia nem mostrava tão depressa como se por isto mostrou. CAPITULO XXIV _Do alvoroço que se seguiu contra a Rainha pela execução dos varejos de Lisboa_ Acrecentou mais este escandalo contra a Rainha, e para a maior parte do povo soltamente contrariar seu Regimento, passar uma carta em nome d'El-Rei, porque fazia mercê a Nuno Martins da Silveira, seu aio, dos varejos a que os mercadores de Lisboa eram obrígados de sete annos, cuja publicação e esperança de execução aos ditos mercadores causou tanta tristeza e sentimento, que certificados de suas perdições, se se executassem, se soccorreram á camara da cidade, e com palavras em que moviam todos a piedade para si mesmos, e com muitas razões que pareciam de serviço d'El-Rei e bem do reino, lhe pediram que com a Rainha e com o conselho, ou por outra qualquer maneira a tal mercê impedissem. A cidade fez sobre isso seu ajuntamento, em que por força entraram mais dos ordenados; e a elle vieram um Bertolameu Gomes, contador, e outro Alvaro Affonso, escrivão da sisa dos pannos, criado de Nuno Martins, em cujo poder era a carta, por serem os solicitadores d'ella; e, sendo lida em publico, foi tanta a defensão e alvoroço em todo o povo, por ser passada por só auctoridade da Rainha sem accordo do Infante D. Pedro, que Alvaro Affonso, com fundamento de lhe fazerem padecer morte mais crua, o fizeram saltar por uma janella, mas, por cair primeiro em um telhado, não morreu; e a Bertolameu Gomes alguns cidadãos seus amigos com grande difficuldade defenderam a vida: cá n'estes, por serem mui ensinados no que pertencia ás rendas d'El-Rei, havia suspeita, que deram azo e conselho, como esta mercê se pedisse. Os que fizeram este insulto e alvoroço em desacatamento da Rainha, eram quasi todolos do povo com alguns principaes da cidade, e com temor que tinham de a Rainha com rigor de justiça os mandar castigar como porventura mereciam, procuravam e ordenavam assi em secreto, como já em publico, que o Regimento lhe fosse de todo tirado, sobre o qual tinham suas praticas, que enviavam logo ao Infante D. Pedro, dando-lhe muitas razões e esforço para só tomar o carrego de reger. O qual, como quer que até li sempre mostrasse estranhar com palavras de honestidade aos que lhe em tal caso fallavam, porém a este tempo por ter sabido e visto como a Rainha se declarava ter-lhe desamor e má vontade, d'hi em diante, aos que n'isso o comettiam, já recebia e ouvia mais com rostro de lhe agradecer que o fizessem para vir a effeito, que de lhe pesar. E porque na cidade havia n'este caso propositos e vontades contrairas, assi naciam d'ellas bandos e rumores que mostravam signaes de rompimentos perigosos, aos quaes nem por provimentos e penas dos officiaes de justiça, nem por pregações que se de industria de bons religiosos para ello fizeram, nunca se pôde atalhar, antes crecia cada vez mais. CAPITULO XXV _Ida do conde d'Arrayollos a Lisboa sobre assessego d'ella, e como não aproveitou_ Era a este tempo na cidade Pedro Anes Lobato, homem de grande auctoridade e bom cavalleiro, ao qual, como quer que de grande condição de sangue não fosse, El-Rei D. João por conhecer d'elle ser bom e discreto, e em armas homem esforçado, deu a governança da justiça da casa do civel, e a tinha; e por vêr a união e desacordo na cidade tamanho, a que com sua vara e forças não podia resistir, avisou de todo a Rainha, e por muitas causas lhe enviou pedir trigoso remedio. A qual com esses que com ella eram presentes, teve sobr'isso conselho, onde foi acordado que o conde d'Arrayollos, que estava em uma quinta junto com Loures, por ter cargo da justiça do reino e ser pessoa de valor e autoridade, fosse poer assessego nas cousas da cidade, para o qual foi logo chamado, e fallou com a Rainha o que n'aquelle caso cumpria: e d'ella por ser de boa tenção e sã conciencia, e tambem de si mesmo por ser virtuoso e justo, foi avisado segundo o feito estava, de o tratar e assessegar mui mansa e temperadamente. Partiu-se logo o conde para Lisboa com a trigança que se requeria, onde chegou á tarde, e para haver melhor informação das cousas, e ter conselho sobre o remedio d'ellas, quizera repousar algum pequeno espaço de tempo sem n'ellas intender; mas ao outro dia por sua ida foi tanto o alvoroço e desacordo na cidade, e com tanta soltura de palavras deshonestas e mostranças de desobediencia, que o conde não sabia que caminho de remedio tomasse; porque os da parte da Rainha favoreceram-se com sua ida, affirmando em seu favor que era para fazer justiça dos alevantadores da união sobre o caso dos varejos, e que contrariavam o Regimento da rainha: e os da parte do Infante D. Pedro e Infante D. João com muitos da cidade, que eram d'outro acordo, tomaram receio de ser por ventura verdade; especialmente porque um Luiz Gonçalves, official na relação, criado de Pedro Anes Lobato, e que ás cousas da Rainha havia grande affeição, affirmou de praça que por a ida do conde á cidade cedo veriam por justiça as gigas da ribeira cheias de pés e mãos de muitos, como de pescado, o que logo se soltou publicamente: e por ser homem d'algum credito e ter officio na casa da justiça, fizeram para isso suas palavras alguma impressão e crença; e pareceu que as não diria sem ter alguma cousa d'isso sentido. Pelo qual alguns principaes cidadãos com verdadeiro temor e occupações fingidas de proverem suas fazendas, se ausentaram da cidade, temendo que em tanto alvoroço não houvesse justo juizo, e que por ventura poderiam receber pena sem culpa. Mas os do povo posposto todo o medo assi continuavam, e acrecentavam a cada vez mais sua união, e com tanto rumor d'algum fim perigoso, que o conde desesperado de com suas forças, nem da justiça poder assessegar o feito como desejava, havido primeiro sobre isso conselho, tentou de o remedear com prégações, palavras brandas, e de conciencia, que por algum bom e entendido religioso em ajuntamentos publicos se dissessem. E havido este por melhor e derradeiro remedio, o conde fez chamar um Frei Vasco da Allagoa, da Ordem de S. Domingos, ao qual por ser padre d'auctoridade e de letras, e ter boa audacia para dizer, encommendou que sobre o caso das uniões e desaccordos da cidade, o domingo seguinte prégasse no seu mosteiro, avisando-o primeiro que todo seu fundamento fosse commover o povo a paz e assessego. E sendo n'aquelle dia por aviamento e rogo do conde juntos no mosteiro quasi todolos da cidade, Frei Vasco começou seu sermão, e por ser servidor da Rainha e ás cousas de seu serviço mais inclinado, esquecido do aviso que lhe fôra dado d'amansar o povo com esperança de bem, tocou o caso e revoltas da cidade com tanta reprensão dos cidadãos e povo d'ella, que com altas exclamações os chamava ingratos e desleaes, trazendo-lhes ás memorias entre outros exemplos, a pena que os cidadãos de Bruges mereceram e houveram pela desobediencia e traição que cometteram contra o duque Filippe. E estando já todo o povo mui descontente e escandalisado das palavras de Frei Vasco, um barbeiro em meia voz, e com rostro iroso disse contra os que junto com elle estavam: «E como egual é o nosso caso dos framengos, que quizeram matar seu principe e Senhor?--Nós não somos tredores mas mui leaes, e não havemos de matar nosso Rei e Senhor; mas porque o amamos havemos todos de morrer por elle, quando lhe cumprir: mas certo este frade alguma cousa tem sentida: porque nos põe esta raiva.» E estas palavras com algum rumor começaram ir de puridade em puridade pelas orelhas de muitos do povo, os quaes assi como as ouviam assi volviam logo os olhos de sanha contra o frade, e com mostranças de tanta indinação, que elle sentindo seu alvoroço, por se não vêr em perigo, desamparou sem conclusão o pulpito, e se acolheu ao mosteiro. O conde d'Arrayollos foi mui descontente do prégador, por errar em todo a sustancia de seu proposito, e do que era para o tempo necessario. E vendo que para amansar o povo já lhe não ficava remedio para o fazer, e que sua estada d'hi em deante lhe faria abatimento, se partiu da cidade, e foi á Rainha dar-lhe de tudo conta. E o povo depois de comer não esquecido do escandalo do sermão foram ao mosteiro e disseram ao priol que logo lançasse Frei Vasco fóra d'elle, se não que o derribariam e queimariam. E o priol aconselhado da necessidade do tempo assi o fez; e o prégador se salvou secretamente. CAPITULO XXVI _Como o Infante D. Pedro foi a Lisboa reprender e assessegar as uniões da cidade_ O Infante D. Pedro estava em Camarate como já disse, e sabendo que a ida do conde seu sobrinho á cidade nas revoltas d'ella não aproveitara, desejando poelas em assessego se foi lá; e no mosteiro do Carmo onde pousou fez logo ajuntar os principaes da cidade com os officiaes da Camara, e com a cara grave e palavras de grande autoridade sustancialmente os reprendeu de suas uniões e alevantamentos, com que faziam doésta á Rainha e a elle e a todolos que tinham cargo de reger por El-Rei o reino; e que por isso tinham merecido aspero castigo, e o mereciam maior se o não atalhassem; e que, se sobre aggravos que tivessem recebidos queriam requerer suas liberdades e direito, que o fizessem por outra maneira como subditos, e que seriam bem ouvidos; e não com presumpção de superiores, de poer e despoer Regedor á sua vontade, como diziam, tocando-lhe sobr'isto muitas e notaveis razões conformes a este proposito, as quaes alguns tomaram que não sahiram verdadeiramente de sua vontade; porque tinham concebido que lhe não pesava de semelhantes movimentos por serem contra o Regimento da Rainha e com fundamento de elle o ter; mas a determinação d'este juizo fique sómente a Deus que o soube. Os cidadãos, depois de ouvido o Infante, lhe responderam mui mansamente, tendo-lhe em mercê aconselha-los bem; e d'es-hi asolvendo-se como melhor podéram dos alevantamentos passados, especialmente no caso dos varejos, em que houveram respeito a não serem os mercadores da cidade pela execução d'elles destruidos, e assi em quererem áquelle escrivão, que persumiram ser inventor, dar tal castigo, que outros por seu exemplo semelhantes cousas não inventassem, pedindo ao Infante que em seus trabalhos e aggravos os quizesse ajudar e favorecer, obrigando-o para isso com razões assaz honestas e boas. Onde logo por um dos procuradores dos mestres foi apontado que as divisões e escandalos não nasciam no reino, salvo por o Regimento d'elle ser repartido por muitos, e que para bem ser, ou havia de ficar sómente á Rainha ou a elle, allegando do contrairo muitos inconvenientes não sem fundamentos de razão, como cousa em que já muitas vezes tinham praticado. E o Infante depois de sobretudo haver largas repricas e praticas, lhe encommendou muito o assessego da cidade, e que para as côrtes que se chegavam, podiam livremente requerer e apontar o que lhes bem parecesse, e que elle no que fosse direito e justiça os ajudaria: e com isto se despediu d'elles, e se tornou a Camarate. CAPITULO XXVII _Como a Rainha mandou secretamente preceber os de sua valia que viessem ás côrtes armados_ A Rainha sendo d'estas cousas informada, sentindo que os alvoroços da cidade não cessavam, antes creciam com fundamento de o Regimento lhe ser tirado, o notificou logo pelo reino a todolos fidalgos, e pessoas d'estima, que entendeu serem por ella, encommendando-lhes que para as côrtes logo vindoiras viessem d'armas e gentes assi percebidos, que com sua segurança podessem resistir a qualquer contrariedade que os povos em seu dessserviço quizessem ordenar e fazer: e para ser mais em segredo, não o escreveu a todos particularmente, mas ordenou regimentos para cada comarca, e escudeiros de que fiava; e com suas cartas de crença os andassem secretamente mostrando áquellas pessoas que ella queria. A qual cousa com quanto pareceu ser incoberta, foi logo ao Infante D. Pedro revelada, e ainda mostrado por mór certeza um dos proprios regimentos: e maravilhado d'isso o descobriu e mostrou logo ao conde d'Arrayollos, que com grande trigança veiu sobr'isso fallar á Rainha, espantando-se muito de tal movimento, e reprendendo quem lh'o conselhára, pedindo-lhe afincadamente com respeitos de serviço de Deus e d'El-Rei, e d'ella, e bem do reino, que o atalhasse, e escrevesse áquelles que cessassem do que lhes tinha escripto. E como quer que ella por sua virtuoza tenção lhe pareceu assi bem e prometesse ao conde de o assi fazer, não se achou porém quem depois o fizesse; antes se soube que logo veiu a ella Pedro Annes Lobato certificar-lhe que os percebimentos e alvoroços d'alguns creciam cada vez mais por seu respeito, e que a fama era que ella os ordenava assi para morte d'alguns principaes por sua vingança, o que como quer que elle sabia o contrairo e o desdissesse, que o não criam como suspeito a suas cousas; e assi tambem lhe pediu que com assessego o remedeasse. E a Rainha crendo que aproveitaria sua desculpa, escreveu logo sobre aquelle caso mui graciosamente á cidade, certificando-lhe o contrairo do que tinham concebido; e encommendando-lhes sua paz e assessego com grande instancia, e com sua crença a Pedro Annes, o qual com quanto em camara dissesse além da carta da Rainha muitas razões e causas para desfazerem suas maginações e cessarem de seus alevantamentos, não aproveitou nada: e com tudo responderam á Rainha «que a causa dos receios e alvoroços que tinham, os seus principalmente os faziam, affirmando e divulgando cousas para assi ser; que os mandasse castigar, e tudo cessaria». E como quer que a Rainha para satisfação d'elles mandasse sobr'isso fazer exame e deligencias para ser asperamente punido quem taes movimentos fizesse: finalmente não se achou certo autor, nem cousa a que em especial fosse razão dar-se fé nem autoridade, e com tudo a furia do povo não amansava. CAPITULO XXVIII _Como o Infante D. Pedro e o Infante D. João sobre estas cousas se tornáram a vêr, e o que acordáram_ O Infante D. João a este tempo era doente em Alcochete; e enviou ao Infante D. Pedro que fosse, como foi, ve-lo, e sendo ambos juntos, o Infante D. João lhe disse: «Senhor irmão, por não estar em disposição de poder ir onde estaveis, vos enviei pedir que chegasseis aqui; assi porque folgo muito de vos vêr, como principalmente por saber parte de vós, e de vossos feitos com a Senhora Rainha, os quaes não devem estar bem nem como á vossa honra cumpre, segundo a soltura e atrevimento que todolos fidalgos tem de fallar contra vós, tirando os de minha casa, e para se isto remedear convem que façaes o que não fizestes, que é nomearde-vos logo por Regedor do reino in solido. E para sosterdes vossa empresa tendes em vossa ajuda mui certos a mim e ao conde d'Ourem que aqui está comigo; e assi a cidade de Lisboa que vo-lo requere; e comvosco serão outros muitos que nos ajudarão n'esta contenda; e então venham os do juramento armados contra vós; e os Infantes d'Aragão entrem a favorecer o partido de sua irmã». O Infante D. Pedro lhe disse: «Leixando o mais que me dizeis, a esta derradeira condição por mais sustancial vos responderei primeiro; e digo que já vos disse outras vezes, quão pouco contente sou da Rainha e de seus máos conselheiros, e da dureza de sua condição, com que nunca quiz perder esta seita contra mim; e Deus sabe que cá lhe não fui nunca nem sou em culpa para assi ser; antes lhe tive sempre merecimento, por desejar de a servir como era razão: e o galardão que d'ella houve foi sempre odio e má vontade para mim e minhas cousas; e mais agora, onde na esperança de suas honras e mercês já os fidalgos como dizeis me não olham senão por desprezo, crendo que o que mais fizer contra mim maior parte haverá d'ellas. E por isto e principalmente por minha segurança, certo prazer-me-ha muito ter corregimento; mas porque a esta sazão e tempo, segundo as divisões estão, eu o não poderia fazer sem esperança de muito damno e grande perda d'este reino, o que eu não queria, a mim parece como vos já disse, leixarmos vir o tempo das côrtes; e se n'ellas se acordar que tenha o Regimento, então serei contente de o tomar; e d'outra maneira não». O Infante D. João disse: «Certo bem me parece vossa conclusão; mas tenho receio a estes de Lisboa com esta vossa dilação perderem por ventura este fervor que tem para vossa ajuda, e serem depois máos de tomar a nosso preposito». «Não cureis (respondeu o Infante D. Pedro) cá se Deus vir que é seu serviço, Elle por sua bondade ordenará como se faça; e por isso sede certo, que por nenhuma cousa não emprenderei encargo que seja sem côrtes; mas que sei que a Rainha escreve aos fidalgos que são de sua parte, que venham a ellas poderosos, eu como defensor o quero fazer saber ás cidades e villas do reino; e que sejam prestes para qualquer movimento e novidade que se seguir.» E com esta tenção que seu irmão aprovou, se despediu d'elle. CAPITULO XXIX _Como o Infante D. Pedro avisou e percebeu o reino sobre os alvoroços que se ordenavam_ E Tanto que o Infante D. Pedro foi em Camarate, que era no começo de Setembro do anno de mil e quatrocentos e XXXIX, logo escreveu a todolos logares do reino notificando-lhe os movimentos que se esperavam, de que era certificado, e as causas de quem procediam, encommendando-lhe que logo se fizessem e estivessem prestes para quando vissem seu recado; por quanto de semelhantes uniões não se podia seguir, salvo desserviço de Deus e d'El-Rei e grande mal e damno de seus reinos e naturaes, e assi foram avisados do Infante os messageiros que levaram as cartas, que todas em todo o reino a um dia certo e logo assignado por elle, fossem dadas. E tanto que assi escreveu, se partiu para Coimbra e suas terras. A carta para Lisboa foi dada na Camara da Feitura a XV dias, sendo já o Infante partido, e depois de vista foi posta nas portas principaes da Sé, onde esteve alguns dias sem haver logar de se poder acabar de lêr, e de noite com candeias a vinham trelladar; e sobre as cousas d'ella as praticas e alvoroços eram tamanhos, que em publico e em secreto não se fallava em outra cousa. Os da cidade depois de haverem seu conselho acordaram responder ao Infante, em que remercearam sua notificação, e se offereceram para todalas cousas que fossem de sua honra e serviço, e elle dispozesse e mandasse. As outras cidades e villas do reino responderam todas conforme a isto em sustancia; sómente a cidade do Porto emadeo mais, que queria que o Infante D. Pedro só, sem outra ajuda nem companhia fosse Regedor: e com estas cartas houve no reino grande alvoroço, com alguma indinação contra a Rainha, por n'ellas se tocar entrada de gentes extrangeiras n'este reino em seu favor e ajuda. Mas se o Infante isto escreveu por ter d'isso a esse tempo alguma certidão, ou o fez de industria por alvoroçar as gentes contra a Rainha e contra os que seguiam sua tenção, isto fique a Deus e em sua conciencia, sómente é de crêr que o Infante o não faria sem causa; especialmente porque a esse tempo os Infantes d'Aragão irmãos das Rainhas de Portugal e de Castela prosperavam n'aquelle reino; e era de presumir que nos aggravos de que se ella queixava, se socorreria a elles, que a deviam e podiam bem ajudar, e elles lh'o não denegariam por seu sangue e grandeza. CAPITULO XXX _Como se o Infante D. Pedro despediu da Rainha, e da falla que como descontente lhe fez_ Ante que o Infante D. Pedro partisse de Camarate para suas terras, foi a Sacavem fallar a El-Rei; e depois de se despedir d'elle e lhe beijar a mão entrou onde a Rainha estava, e com a presença carregada lhe disse em pé e de praça algumas palavras, cuja sustancia foi recontar-lhe serviços que lhe tinha feitos com desejo de fazer outros maiores, de que finalmente até então não houvera d'ella outro galardão, salvo odio e má vontade com que sempre procurára em todo sua deshonra e abatimento; e assi lhe tocou nas differenças em que andavam, e nos percebimentos que mandára fazer, e em outras cousas d'esta calidade, com razões assaz graves e honestas, e em fim declarou «que até li a Rainha o tivera como ella queria, e que d'hi em deante o tomaria como o achasse». E n'esta conclusão que pareceu de rompimento, se despediu d'ella sem lhe beijar a mão, nem cometer de o fazer. O que a Rainha ouviu com grande segurança e assessego, e não lhe respondeu cousa alguma; porque o Infante com sua trigosa partida não deu a isso lugar, e porém sentiu muito partir-se assi d'ella o Infante com mostrança de tamanho desacatamento; o que por assi passar de praça foi logo divulgado, que a uma parte e a outra acrecentou mais materia d'alvoroços e uniões. CAPITULO XXXI _Como a Rainha com El-Rei e seus filhos se foi a Alanquer, e do que se seguiu em Lisboa_ A Rainha se partiu com El-Rei e seus filhos e sua casa para Alanquer, muito revosa dos movimentos e alvoroços de Lisboa, e pouco segura em Sacavem onde estava, por ser aldêa fraca e tão perto da cidade, como quer que d'alguns seus fosse aconselhada que o não fizesse, antes que se fosse dentro á cidade; porque era de crêr que sua presença daria ao povo menos ousadia para contra ella seguirem e acabarem o que tinham começado; e que sua ausencia com mostrança de temor causaria o contrairo. Os officiaes de Lisboa vendo esta mudança da Rainha fizeram logo seu ajuntamento, onde Vicente Egas, homem cidadão velho, entendido e de grave representação fez uma falla com largo recontamento, cuja sustancia foi avisar a cidade dos males e perigos que por as mudanças presentes se lhe aparelhavam; e como para terem por cabeça alguma pessoa que por ella os resistisse, lhe era necessario enlegerem e tomarem alferes, apontando logo o capitão Alvaro Vaz d'Almada, que da cidade fôra o derradeiro alferes, como por outros muitos e mui dinos merecimentos e louvores que d'elle com verdade recontou; no que todos consentiram, e por dois cidadãos o enviaram logo chamar,por quanto era fóra da cidade; e em chegando á ribeira, sendo já sabido a determinação sobre que vinha, se ajuntou com elle a mór parte da cidade, e assi acompanhado com grande honra foi levado á Camara, onde por os vereadores com certas cerimonias e largas palavras de grande seu louvor e muita confiança, lhe foi entregue a bandeira da cidade com suas condições; e elle a recebeu com palavras cortezes e discretas, e de grande esforço; porque era cavalleiro que n'este reino e fóra d'elle por esperiencias mostrou que isto e muito mais de louvar havia n'elle, cá em França por sua ardideza e bondades foi feito conde d'Abranxes, e em Inglaterra por sua valentia foi recebido por companheiro da Ordem da Garrotea, de que principes christãos e pessoas de grande merecimento são confrades; e em Portugal por todas estas, e mais por sua linguagem e fidalguia mereceu ser como foi capitão mór do mar. CAPITULO XXXII _Accordo que o povo de Lisboa fez ácerca do Regimento_ Estando o Regimento do reino n'este balanço, mais com mostranças de guerra que de paz, e com signaes mais de perigo que de segurança, os officiaes macanicos de Lisboa com outra gente popular se ajuntaram em S. Domingos da Cidade, onde fizeram escrever e assignaram um acordo, em que por algumas razões que apontaram, e em especial por o perigo e não bom Regimento do reino, declaravam e se affirmavam, «que o Infante D. Pedro fosse seu Regedor e defensor sómente; e que assi promettiam de o requerer nas côrtes; e que o contrairo não consentiriam ou morreriam sobr'isso, se o caso assi requeresse.» A qual cousa sendo logo sabida, como quer que a alguns parecesse determinação de pouco peso e auctoridade, o contrairo pareceu a Pedro Annes Lobato, que por ser muito servidor da Rainha, se foi logo a Alanquer onde estava, e lhe notificou com tristeza aquelle acordo, havendo-o por principio mui contrairo a seu serviço, affirmando que não podia ser sem favor e consentimento dos principaes, e com aquelle acatamento que devia a reprendeu muito da segurança que n'estes feitos sempre tivera, e o pouco cuidado de os remediar nos começos ante d'alguma execução, especialmente estando tão ácerca e tão avisada cada dia dos movimentos que se faziam. E perguntado pela Rainha e pelos do conselho que hi eram, que se faria ou que remedio se daria para o povo cessar de seu alvoroço, Pedro Annes respondeu «que já não sabia, salvo pedi-lo a Deus.» E finalmente depois de sobre isso praticarem, acordaram que a Rainha escrevesse, como logo escreveu á cidade, e além das razões santas e virtuosas na sua carta logo declaradas, por que deveram ser bem seguros dos receios com que se alteravam, Pedro Annes que era o messegeiro, lhes disse outras muitas mais, a ellas conformes, em que não fallecia siso e prudencia; mas d'isto em fim se fez pouca estima, e responderam a tudo como já endurecidos em sua maginação e porfia. CAPITULO XXXIII _Como a cidade de Lisboa entendeu contra o Arcebispo D. Pedro pelos cubelos da alcaçova que tomou_ Não é de duvidar que a Rainha para toda paz, bem, e assessego do reino tivesse sempre mui virtuoso desejo; mas muitas vezes por ventura, por estar assi determinado na providencia divina, os seus sem vontade d'ella damnavam e faziam duvidoso seu proposito; porque estando a cidade de Lisboa em alguma consiração de repouso por o que a Rainha lhe tinha escripto e enviado dizer, o Arcebispo D. Pedro seu primo, que em todo seguiu sua tenção, pousava nos seus paços d'Alcaçova pegados com Sancta Cruz, e porque entre elles e o castello vae um lanço de muro em que está a porta, que se chama de Martim Moniz com alguns cubellos altos, mandou cobrir e abrir para elles uma porta porque se corriam por cima do muro, ficando a porta da cidade que sahia para fóra sujeita a sua disposição, e da outra parte dos paços contra o bairro dos escolares, tinha dias havia feita uma torre mui alta, forte e fremosa em que se acolhia; e sendo as cousas da Rainha havidas na opinião do povo por tão suspeitas, o Arcebispo além da obra e refazimento que nos cubellos mandara fazer, dizia soltamente palavras ques pareciam ameaças com esforço alheio. E deu aos seus armas além das custumadas, e dizia-lhes de praça taes razões, que os mettia em alvoroço; e elles fallando ousadamente pela cidade, mettiam a outros muitos em outro maior: e com isto não apagavam, mas acendiam mais a suspeita e receios que o povo tinha: a qual cousa sentida pelos officiaes, fizeram sobre isso vereação e acordo; e por dois deputados para isso mandaram requerer em sustancia ao Arcebispo que logo despachasse e leixasse o muro e cubellos, que eram proprios da cidade, de que a tinha forçada. O qual anojando-se de tal recado, como era de aspera condição, e não muito sobjecto a deliberado conselho, respondeu aos messegeiros de maneira que foram d'elle mui descontentes; sobre o qual se tornaram outra vez a juntar em camara, e se alguns com difficuldade o não temperaram, o primeiro acordo era de mór rigor e damno; mas em fim acordaram que os cubellos fossem logo despachados, e fechada a porta que o Arcebispo mandára abrir; do que elle mui anojado, sendo constrangido para o cumprir, se sahiu logo da cidade, e depois para Castella, como ao diante se dirá. CAPITULO XXXIV _Vinda do Infante D. João á cidade_ A cidade de Lisboa, pela confusão e receios em que estava, acordou de enviar o capitão Alvaro Vaz ao Infante D. João, notificar-lhe os feitos como estavam e pedir-lhe por mercê, que para ser sua cabeceira quizesse estar na cidade, porque sua presença lhes era mui necessaria, até que nos feitos se tomasse alguma boa conclusão. Ao Infante prouve muito de o fazer; e se veiu logo a ella e pousou nas casas da Moeda, onde entendida a sustancia do caso, conhecendo que a maior parte da inclinação e vontade do povo e cidadãos, era o Infante D. Pedro reger, louvou muito seu proposito, e os esforçou n'elle. CAPITULO XXXV _Como a Rainha escreveu a Lisboa e todo o reino sobre o assessego d'elle_ A Rainha como foi em Alanquer, logo escreveu a Lisboa, e alli geralmente a todas as cidades, villas e povos do reino, notificando-lhe alguns beneficios e boas obras que já lhes procurara para os obrigar; e assim as causas dos aggravos e sem razões que ácerca do Regimento recebia, para os mover a piedade, descarregando-os com razõas boas, honestas e de razão, dos temores que d'ella tinham ácerca do meter das gentes estrangeiras n'estes reinos, e segurando-os da vingança que lhes faziam crêr que ella d'alguns cruamenta queria tomar; encommendando-lhes e requerendo finalmente, que para as côrtes que se chegavam, cessassem de requerer novidades acerca do Regimento, e quizessem approvar o que El-Rei D. Duarte seu marido leixara, ou ao menos o que nas côrtes de Torres Novas fôra acordado, com alguns protestos fundados em sua boa e virtuosa tenção, mandando que por seu descargo se d'ello se seguissem alguns males e inconvenientes, que suas cartas se registassem nos livros das camaras, e puzessem nos cartorios das religiões: o que se não fez assim; porque na maior parte do reino era o alvoroço tamanho contra a Rainha, que álem de não quererem vêr suas cartas, ainda tratavam os messegeiros d'ellas asperamente, e não como deviam. E porque Gomes Borges que era escrivão da chancelaria d'El-Rei, poz nas portas da Sé a carta que a Rainha enviou a Lisboa, foram os povos sobre elle, e tão indinados, que com difficuldade escapou da morte. CAPITULO XXXVI _Declaração que Lisboa fez de o Infante D. Pedro só reger o Reino_ Estando assi as cousas n'esta confusão, o doutor Diogo Affonso Mangancha em que havia letras e ardideza com pouco repouso, e um Lopo Fernandes, tanoeiro de Lisboa, homem velho afazendado, e de que o povo fazia grande cabeceira, estes ou por serem afeiçoados á parte do Infante D. Pedro, ou por lhes parecer razão elle só reger e não a Rainha, ordenaram e praticaram entre si que o doutor fizesse na camara uma publica falla sobre isso, affirmando que todavia era bom, antes das côrtes se fosse possivel, assi se declarar e requerer; e que ao menos no cabo da falla conheceriam nos rostos dos mais suas vontades para seu aviso: e era opinião que d'esto não desprazia ao Infante D. João, pelo favor que dava e gasalhado que fazia a este tanoeiro. E junta a mór parte da cidade na camara, sem geralmente se saber a que fim, o doutor Diogo Affonso propoz sua falla, em que logo com muitas e vivas rasões tocou os erros que havia em o Regimento do reino ser repartido, como fôra em Torres Novas; e assi com determinações do Direito Canonico e Civil, e com auctoridades do Testamento Novo e Velho, e com exemplos d'historias antigas reprovou Regimento publico ser dado a mulher, porque excludio a Rainha; e com outras de não menos rasão e auctoridade provou que devia ser dado a homem barão, em que houvesse as virtudes e calidades que todas achou com verdade no Infante D. Pedro, para o qual concludio que devia ser requerido e forçado para isso, quando por sua vontade o não quizesse acceitar. Acabando o doutor sua falla, foi-lhe por um vereador dadas graças por ella em nome de todos, os quaes encommendaram logo ao capitão que desse sobre o caso sua voz, que a deu com cautellas e fundamentos de homem prudente e mui avisado, em que concludiu mais além, que era grande perigo e aleijão, El-Rei ser mais criado em poder de mulheres; e não menos erro reger a Rainha, não sem muitos merecimentos e grandes louvores d'ella, que tambem apontou para ser sempre servida e acatada; e que o Infante D. Pedro devia reger. Era alli Martim Alho, cidadão honrado, e por ser muito servidor da Rainha quizera dilatar esta conclusão para outro ajuntamento e mais pessoas, parecendo-lhe que se apertava muito em seu d'esserviço; mas Ruy Gomes da Grã, outro si cidadão, e de boa e antiga linhagem, que era presente, com palavras de grande auctoridade e rasão contradisse muito a dilação n'este caso, e louvou a breve conclusão; e depois de muitas praticas e largos apontamentos, elle com os mais approvaram e pozeram em escripto este accordo que se segue. CAPITULO XXXVII _Fórma do acordo sobre o Regimento_ Em nome de Deus nosso Remidor e Salvador Jesus Christo, e de sua Santissima Madre a Virgem Maria nossa Senhora. Acordâmos em uma voz e acordo, todolos fidalgos, cidadãos, e homens bons da cidade de Lisboa, consirando o trabalho e grande destruição que em todo o reino ha por causa de ter diversos Regedores, entre os quaes sempre era divisão, em grande damno e perda de todo o reino, querendo a cidade remediar a serviço de Deus e d'El-Rei nosso Senhor, como aquella que sobre todas as cousas d'este mundo mui leal e verdadeiramente o ama, todos em uma voz acordamos, e determinamos que n'estas côrtes que ora prazendo a Deus serão feitas, conhecendo nós a grande lealdade e muita prudencia do muito alto e muito excellente Principe e Senhor o Infante D. Pedro, e como é filho legitimo do muito poderoso e virtuoso Rei D. João nosso Senhor, cuja alma Deus haja, e o mais ancião sangue chegado á mui alta e real corôa do muito excellente e poderoso Principe El-Rei D. Affonso nosso Senhor, que elle dito Senhor Infante D. Pedro seja Regedor livremente e in solido n'estes reinos, e até que prazendo a Deus, El-Rei nosso Senhor, que sobre todos mais lealmente amamos, seja em edade para os por si poder reger e deffensar, ao qual tempo o dito Senhor Infante D. Pedro seu leal sangue e vassalo leixará livremente a possessão de seus reinos e senhorio; e lhe entregará a ministração e Regimento d'elles pacificamente, para El-Rei nosso Senhor os governar e reger, como fizeram os mui virtuosos Reis d'onde elle descende; e vindo tal caso, que o Senhor Infante D. Pedro não possa ter o Regimento e governança dos ditos reinos, que por esta fórma e maneira seja dada e a haja o mui leal Principe e Senhor Infante D. Anrique seu irmão; e fallecendo elle, seja por o semelhante dada ao Senhor Infante D. João; e por esta guisa ao Senhor Infante D. Fernando, que Deus de terras de mouros traga com bem e liberdade a estes reinos; e fallecendo todos ante que El-Rei D. Affonso nosso Senhor seja em edade para reger, que então por esta fórma venha o dito Regimento ao conde de Barcellos, e aos condes d'Ourem e d'Arrayollos seus filhos, com todas as clausulas e condições suso escriptas. E assi acordamos e determinamos que a muito alta e muito excellente e muito prezada a Rainha D. Lianor nossa Senhora seja sempre em sua vida honrada e manteuda, acatada e servida em seu alto e real estado; e por esta mui nobre e leal cidade de Lisboa e povo d'ella lhe seja sempre feito tanto serviço, prazer, e mandado, assi como somos teudos e obrigados por bons e leaes vassallos, e por ser madre d'El-Rei nosso Senhor, assi e pela guisa que lh'o sempre fizemos em vida d'El-Rei D. Duarte, seu marido nosso Senhor, cuja alma Deus haja; e muito mais podendo-se fazer. Alguns houve alli e poucos, a que d'este acordo não prouve; em especial a Martim Alho, que sobre algumas palavras que acerca d'esso disse, não lhe conveiu mais esperar; e se foi com sua vida e honra, a que o rumor do povo começava já de ser contrairo. CAPITULO XXXVIII _Notificação d'este accordo ao Infante D. João, que o approvou_ Feito e assignado este accordo, enviaram logo chamar Vasco Gil, confessor do Infante D. João, ao qual deram o accordo e lhe encommendaram que o mostrasse ao Infante, a cuja prudencia, correição e prazer o sometiam. E mui em breve tornou Vasco Gil com a resposta em que o Infante approvava e louvava seu accordo, não como cousa feita por homens, mas como inspirada n'elles por Deus. E que porém ao outro dia quinta feira fossem ouvir missa com elle a Sancto Spiritu, e que alli lhes responderia. Ao qual dia juntos todos e ouvida a missa, que se disse muito solemne com seus capellães e cantores, o Infante apartou os da cidade sómente e alli resumiu o accordo que fizeram e lhe enviaram mostrar. Onde com palavras de grande equidade lhes aguardeceu a notificação d'elle. E com razões de muita auctoridade o approvou, offerecendo-se a elles. E pois aquella era a verdade, que pospostos os espantos, ameaças e receios que se logo apontaram, promettia de lh'a ajudar a manter e cumprir: pelo qual a cidade assi favorecida em seu proposito fez no outro dia ajuntar no refeitorio de S. Domingos todo o povo, aquelle que pôde caber, onde em pulpito Pedro Anes Sarrabodes notificou em alta voz o accordo passado e a maneira que se n'isso tivera, requerendo a todos que dissessem o que d'elle lhes parecia. Onde logo sem bem se acabar a pregunta um Diogo Pirez, alfayate, bradando respondeu: «que accordo nem parecer ha de ser o nosso, salvo assignarmos todos esse, e fazermos logo vir o Infante D. Pedro, e comece de reger!» Com aquella voz seguiram tantas vozes, que alguma se não ouvia; e com os assignados dos que tinham assignado foram logo outros tantos postos, que não cabiam em um grande quaderno; porque assi trabalhava cada macanico official de poer alli seu nome como se na postura d'elle acrecentasse sua honra e fazenda, e remedeasse de todo a necessidade do reino. CAPITULO XXXIX _Notificação do dito accordo á Rainha, que o contrariou, e assi aos Infantes e ao reino_ Concordado e assignado este accordo, a cidade o notificou logo á Rainha com fundamentos e causas justas e honestas, e com palavras do mór acatamento seu, que no caso cabiam. A qual lhes respondeu com uma notavel justificação, desfazendo e anichilando particularmente todalas cousas do acordo, denegando-lhe em todo a auctoridade para tal poderem fazer, sem ajuntamento e concordia dos tres Estados do Reino, encomendando-lhes a revogação do accordo com algumas protestações e cautellas dos damnos, se sobr'isso viessem. Não sómente a cidade de Lisboa notificou este accordo á Rainha, mas logo aos Infantes D. Pedro e D. Anrique, e condes; e assi ás cidades e villas do reino. E o Infante D. Pedro lhes respondeu agardecendo-lhes com palavras mui graciosas seu proposito, e offerecendo-se com outras de muito peso e discrição, aceitar o Regimento e seguir jurar e manter as condições do acordo. No qual isso mesmo as cidades e villas do reino sustancialmente consentiram. E principalmente a cidade do Porto por ter aquello mesmo dias havia determinado. Mas o Infante D. Anrique na resposta que sobr'isso enviou, não mostrou ser do accordo contente, não por erro da sustancia d'elle, mas no modo que tiveram, por tomarem em tal caso a autoridade e poder que aos tres Estados do Reino em côrtes era sómente reservado, conforme ao que a Rainha apontára, concludindo em remeter seu acordo e tenção para as côrtes que se logo esperavam, onde tudo bem visto e consirado se faria o que fosse mais serviço de Deus e d'El-Rei, e bem de seus reinos, amoestando-os finalmente para paz e assessego, poendo-lhes os inconvenientes da divisão. E mais de si mesmo justificando tudo com palavras e razões de tanta autoridade, que bem pareciam dinas de tal Principe. E que sobretudo iria a Coimbra fallar ao Infante D. Pedro, e ao conde de Barcellos seus irmãos, e a conclusão que tomassem lhes faria logo saber. D'esta resposta do Infante D. Anrique não foram os da cidade contentes; e muito menos o Infante D. João que n'ella era presente, o qual tomou cargo de responder, como respondeu por ella a seu irmão, em que lhe afirmou o acordo se fazer e divulgar com sua autoridade, justificando com vivas razões todolos passos d'elle, tocando mui verdadeiramente para assi ser as necessidades em que o reino estava e danos que recebia por a multidão e divisão dos Regedores; e quanto um era mais necessario e proveitoso, o qual não podia nem devia ser, salvo o Infante D. Pedro seu irmão, por as calidades que n'elle para isso havia, que logo apontou dinas d'outro Regimento maior. Pedindo emfim, que com elle quizesse dizer:--_Confirmat hoc Deus, quod operatus est in nobis._-- D'este acordo de Lisboa pesou muito ao conde de Barcellos; e comquanto era assaz discreto e avisado, em recebendo a acta da cidade, não pôde dessimullar o desprazer e sentimento que por isso recebia. E não era por singular affeição que tivesse á Rainha, nem por sentir que em ser o Infante D. Pedro Regedor era perda ou damno do reino; mas sómente segundo juizo commum e especiaes, que se depois seguiram, era com respeitos de seu interesse particular; de que porventura lhe dava mais esperança a brandura da Rainha governando, que o rigor e justiça do Infante regendo. CAPITULO XL _Partida do Arcebispo D. Pedro fóra do reino_ D. Pedro, Arcebispo de Lisboa, era na Alhandra anojado pela privação dos cubellos da cidade, como já disse; onde fallando com um Affonso Martins, ourives, que da cidade sobre cousas de suas rendas fôra com elle negociar, tocou os accordos e movimentos da cidade com palavras de doesto dos cidadãos e povos d'ella; ameaçando-os com cerco poderoso de gentes estrangeiras, e com outros muitos males e deshonras, de que os em pessoa d'aquello logo certificava, e que não tardariam muito, congeiturando de sua confiança e favorecendo sua ameaça em alguns do reino e em outros muitos de fóra d'elle, que eram os infantes d'Aragão e sua valía. A qual cousa o ourives respondeu bem e avisadamente, esforçando se em lhe não parecer direito de sua verdadeira vontade; porque d'elle não era de crêr cousa que tanto contrariava a seu sangue e habito, e na bemfeitoria e mercê que d'El-Rei D. João e de seus reinos tinha recebido. Com o sentimento e juizo que o ourives tomou da tenção do Arcebispo, se tornou á cidade, onde o logo fez saber na camara d'ella. E por isso, e por se provar em uma inquirição que se contra o Arcebispo tirou, que brasfemara do Senhor que o fizera, a cidade com sua cleresia appellaram d'elle e o suspenderam de suas rendas e dinidade; e se enviaram queixar d'elle á Sé Apostolica por um João Lourenço Farinha, cidadão e pessoa de saber e auctoridade, com supplicatorias em nome d'El-Rei e dos Infantes. Pelo qual o Arcebispo se quizera colher a Obidos, e os da villa com sua suspeita o não quizeram n'ella receber. E elle vendo que os feitos se inclinavam já contrairos de seu proposito e desejo, se partiu para Castella, d'onde depois foi retornado como se dirá. A Rainha sendo já certificada da determinação em que o povo estava de lhe tirar o Regimento e da-lo ao Infante, sendo assi aconselhada por aquelles que a serviam, escreveu aos fidalgos que sostinham sua parte que não viessem ás côrtes, e se escusassem como melhor vissem; e enviassem a ella procurações abastantes com suas protestações de não outorgarem nem obedecerem em cousa que se n'ellas accordasse. E elles assi o fizeram, os quaes eram o Arcebispo de Braga, o Priol do Crato, o marechal D. Duarte, senhor de Bragança, D. Duarte de Menezes, Fernão Coutinho, Gonçallo Pereira de Riba-Vizella, Alvaro Pirez de Tavora, Diogo Soarez d'Albergaria, Fernão Soarez, Ruy Vaz Pereira, Luiz Alvares de Sousa, Pero Gomes d'Abreu, Lyonel de Lima, Gomes Freire, Lopo Vaz de Castel-Branco, Martim Affonso de Mello, Diogo Lopes Lobo, Fernão de Sá, João de Gouvêa, D. Sancho de Noronha, e alguns filhos d'estes, e outras algumas pessoas d'outra condição. Mas como quer que estes não viessem ás côrtes, posto que fossem tão grandes pessoas, ellas não se leixaram de fazer, nem elles recusaram obedecer inteiramente ás determinações d'ellas. Que por aquelle tempo, ainda que os fidalgos muito valessem, não era seu valor para contrariar a vontade dos filhos e netos d'El-Rei D. João, com que o reino e todalas cousas d'elle, por amor e razão logo pendiam. CAPITULO XLI _Como o castello de Lisboa foi pela cidade tomado e dado ao Infante D. João, e o que se n'isso seguiu_ D. Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando seu filho sostinham a parte da Rainha; e porque D. Affonso era alcaide mór de Lisboa, tanto que sentiram as voltas da cidade contrairas a sua tenção se meteram no castello, e com elles alguns fidalgos seus amigos e outra gente de sua criação: e começaram logo de poer n'elle grandes avisos de guardas de dia, e vellas e roldas publicas de noite. E os da cidade vendo tal novidade, e sendo certificados de muitas ameaças e palavras deshonestas que as vellas contra elles diziam, como sentidos d'isso acordaram de ir combater o castello. Mas o Infante D. João por evitar escandalos e damnos que se podiam d'isso seguir, por então os impediu; e tomou o cargo de assessegar se podesse esta alteração, por meio de D. Maria de Vasconcellos, mulher de D. Affonso, a qual por consentimento, e com seguridade do povo lhe veiu fallar ás casas da Moeda. Onde o Infante com palavras mui honestas e virtuosas lhe apontou, que por assessego de tantos alvoroços e uniões, quantos na cidade via contra seu marido e filho, fizesse com elles que lhe entregassem o castello, ou consentissem por sua segurança, que o Infante pousasse dentro, e elles tivessem suas forças e menagem. D. Maria com este recado se veiu ao castello, e depois de sobre tudo haverem suas praticas e conselhos, ella tornou ao Infante com resposta e determinação de seu regimento. A qual brevemente foi elles não entregarem o castello, nem receberem outrem n'elle, nem se sahirem d'elle. Verdade é que o pae logo consentira em alguns dos meios apontados; mas o filho por ser mancebo, em que o sangue e pontos de honra ferviam, o houve por abatimento e o estorvou, especialmente porque havia o partido da Rainha que seguiam, por mais esforçado que o do Infante D. Pedro que contrariavam; e juntamente com isto D. Maria disse ao Infante D. João: «Senhor, se vossa mercê tanto desejo tem d'haver este castello, não sei porque o não tem d'haver tambem quantos outros ha no reino; pois está em vossa mão, e o podeis fazer, e para certidão d'isto a Rainha minha Senhora vos envia por mim dizer, que ella é tão magoada das sem razões que o Infante D. Pedro contra ella tem feitas, e cada dia ordena, que antes se despoeria a todolos trabalhos e perigos do mundo, que consentir ser elle Regedor d'estes reinos. E que para verdes que o não faz por ella desejar para si o regimento, é mui contente que o hajaes vós. E para isso renunciará o direito que n'elle tem; pois sabeis que é todo o que de razão e justiça se requere. E mais lhe praz que El-Rei nosso Senhor seu filho case com D. Isabel vossa filha: e que d'aqui em diante vos terá em lugar de padre, para por este respeito e assi por ser já mulher d'El-Rei vosso irmão, que vos tanto amou, olhardes por ella e por suas cousas». O Infante sorrindo-se das derradeiras palavras de D. Maria lhe disse: «D. Maria, porque vos responda segundo logo começastes, a mim pesa de vosso marido e filho não consentirem em alguma das cousas que lhe por vós enviei apontar; Deus sabe que eu o fazia por seu bem; se lhes d'isso sobrevier algum mal pesar-me-ha; mas eu sem cargo. E quanto das outras cousas que da parte da Senhora Rainha me dissestes, dizei a sua Senhoria que nunca Deus queira nem quererá que entre os filhos d'El-Rei D. João, que nas mocidades em tanto amor e concordia se criaram, seja agora semeada tal cizania, porque se desamem e desconcertem; eu haveria temor de Deus e vergonha do mundo, não digo acceitar, mas sómente lembrar-me d'acceitar o Regimento do reino, em que tivesse dois irmãos mais velhos, e taes para isso, como são o Infante D. Pedro, e o Infante D. Anrique. E quanto ao casamento d'El-Rei meu Senhor com minha filha não sendo o caso como é, certo seria a maior honra e o mór acrecentamento que eu poderia desejar. De uma cousa sede bem certa, que com melhor vontade e menos sentimento meu soffreria ve-la no mundo em uma publica dissolução, que Deus não queira, que casa-la por tal maneira, contra a honra e vontade do Infante meu irmão, que me tem e eu lhe tenho mui verdadeiro amor. Cá não sómente erraria a elle, por ter já n'isso entendido e ser cousa mui razoada, mas ainda desobedeceria á alma e mandado d'El-Rei meu Senhor e irmão que Deus haja. Cuja vontade, assi na vida como na morte, sabeis que foi este casamento d'El-Rei nosso Senhor seu filho, com a filha do Infante meu irmão se fazer em toda maneira. E por isso esta é a razão que se faça, e não se deve contrariar. Mas vós dizei á Senhora Rainha, que sem isto que me por vós manda cometer, me tem sua mercê por fiel e certo seu servidor, e lhe peço por mercê que queira viver como é razão, e não curar de cousas que a ella nem ao reino não cumprem. E vós por seu bem e assessego, e com vossa discrição assi lh'o deveis d'aconselhar». E com isto a despediu. Os da cidade vendo a contumacia e ousadia de D. Affonso, receosos de poder ser com algum fundamento que a elles podesse ao diante trazer damno e perigo, por accordo geral que sobr'isso houveram, foram cercar o castello e o vallaram d'arredor, e lhe pozeram estancias e guardas para que de noite nem de dia não entrasse nem sahisse d'elle alguma pessoa, nem os de dentro podessem receber soccorro, aviso, nem mantimentos. E porque D. Affonso e seu filho com sua gente entráram no castello de subito, sem percebimento de mantimentos, vendo se apertados da necessidade e perigo, e frouxos de esperança de remedio, leixou o castello ao Infante D. João com algumas seguranças que requereu, e se foi para a Rainha. CAPITULO XLII _Mandou a Rainha velar e afortalezar Alanquer, onde tinha El-Rei_ A Rainha estava em Alanquer, onde tinha El-Rei e seus filhos, como já disse. E por lhe ser dito que depois do accordo de Lisboa, o Infante D. Pedro se percebia em Coimbra de gentes e armas, e que a fama e rumor era, ainda que falso fosse, para a vir cercar e a levar d'alli e El-Rei ás côrtes de Lisboa; tendo sobr'isso conselho, e não tomando o que mais devia, mandou velar, afortalezar e repairar a villa de muros, gentes, armas e mantimentos, e se poz em som de defeza, se tal caso sobreviesse. Com que ácerca do povo não aproveitou, mas damnou muito suas cousas; porque acrecentou e confirmou a muitos a suspeita que se d'ella havia, em esperar para seu socorro e ajuda gentes de fóra do reino. CAPITULO XLIII _Dissensão que a Rainha procurou d'haver entre o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique_ Sentindo a Rainha que o Infante D. Anrique, com quanto se mostrára sempre a seu serviço, seguia acerca do Regimento a parte do Infante D. Pedro. Por causar entre elles suspeita e differença em sua conformidade. Ou por ventura e mais certo, por lh'o fazerem assi crêr. Escreveu secretamente de sua mão ao Infante D. Anrique que se não fiasse do Infante D. Pedro. Porque elle para haver com menos impedimento o Regimento que procurava, e mais soltamente usar d'elle, como era sua vontade, sabendo que não havia no reino de quem esperasse contradição, salvo d'elle, soubesse certo que o queria prender, de que sua vida não estaria muito segura. E ante que a carta d'este aviso fosse dada ao Infante D. Anrique, que estava em Soure, o Infante D. Pedro, que era em Montemór-o-Velho, por meios secretos que trazia, foi d'ella primeiro sabedor. E para preservar a vontade do irmão, que com tamanha falsidade contra elle em alguma maneira se não damnasse, partiu a gram pressa e mui aforrado, e lhe foi fallar, não lhe revelando cousa alguma da carta que lhe havia de vir; mas acceitando geralmente seu coração, com a firmeza de seu amor e amizade, para os movimentos e desaccordos que se lhe aparelhavam. Pedindo-lhe, que se contra elle viessem a suas orelhas algumas cousas, que a isto contrariassem, que as não recebesse em seu juizo, e d'elle cresse que o amava como a si mesmo. O Infante D. Anrique não se saltou muito com aquella vinda; porque lhe parecia que os tempos e as mudanças d'elles o causavam e requeriam. E porém com palavras que em siso e prudencia, e confiança não desacordaram das do Infante seu irmão, lhe respondeu e o despediu. A dois dias que o Infante D. Pedro se partiu, chegou Martim de Tavora ao Infante D. Anrique com a carta da Rainha que disse. E como a viu, maravilhado da sustancia d'ella, se foi logo a Coimbra só, onde já era o Infante D. Pedro. Ao qual mostrando-lhe a carta disse: «Vêde senhor irmão o que me escreve a Rainha; mas porque vejaes bem o temor que tenho de vós, venho assi percebido e seguro a vossa casa.» E o Infante D. Pedro rindo-se, e com mostrança de grande amor, o abraçou e lhe disse: «Senhor irmão, não me espanto taes tempos e taes vontades criarem fruita tão nova. E porque sabia já que vos haviam de convidar com ella, sem vo-lo dizer vos fui falar. Cá não eram a outro fim as cautellas da segurança que vos de mim fui dar; porque ainda que sobre tanta razão e firmeza pareciam então escusadas. Sabei que o receio d'este damnamento as não escusou. E porém a prisão que vós aqui recebereis será a honra e amor que de mi sempre recebestes, e me vós mui bem mereceis. CAPITULO XLIV _Embaixada dos Infantes á Rainha_ Alli estiveram os Infantes alguns dias, e com elles o conde de Barcellos seu irmão. E para com mais repouso e menos torvação proverem as cousas do reino, se foram ao logar da Pereira, onde accordaram que o conde de Barcellos fosse á Rainha requerer-lhe com razões assás justas e necessarias, que fosse ás côrtes de Lisboa que haviam de ser o derradeiro dia de Novembro. E que se para sua ida e dos seus quizesse alguma segurança, ainda que não fosse necessaria, lh'a dariam na fórma que apontasse. Partiu o conde de Barcellos para Alanquer, e por seu aviso, no dia que chegou foi ahi com elle seu filho o conde d'Arrayollos, que estando comendo se ajuntaram em sua casa por modo de visitação as pessoas principaes que hi eram. O conde lhes estranhou logo com palavras honestas e razões mui efficazes, os alvoroços que na villa faziam de vellas e roldas, e tomamento d'armas aos vassallos, que pareciam começos de guerra, e como cousa feita por errado conselho a fez amansar, e tornar todo a estado pacifico. Foi logo o conde fallar á Rainha, e lhe disse: «Senhora, os Senhores Infantes meus irmãos e eu, acordamos de eu vir a vós para sustancialmente saberdes que para concordia e bom assento dos grandes movimentos e negocios, que ora são n'estes reinos, assi do Regimento d'elles, como da cisma dos Papas e livramento do Infante D. Fernando, é mui necessario fazer-se côrtes geraes ante do saimento, ás quaes é bem que El-Rei nosso Senhor e vós vades. E elles e eu assi vo-lo pedimos que o queiraes fazer. «A mim prazera, respondeu a Rainha ir ás côrtes como requereis, se ante d'ellas as cidades e villas do reino revogarem a enleição do Regimento que tem feita ao Infante D. Pedro, e elle a renunciar. E mais por quanto alguns fidalgos e outras pessoas por juramento são obrigados, assi a mim como a elle, de sosterem a parte que seguirmos, é bem que tudo isto se revogue, para uns e outros poderem livremente dizer e conselhar o que lhes parecer serviço de Deus e d'El-Eei meu filho Senhor, e bem de seus reinos. E se isto primeiro assi se não faz, eu por alguma maneira não irei ás côrtes.» Com esta resposta assignada pela Rainha se partiu o conde para Coimbra, onde achou sómente o Infante D. Pedro. O qual depois de a vêr, disse: «A inclinação que os povos sem mim e meu requerimento acordaram, elles pois tem o poder se o assi houverem por bem a revoguem. E para isso é mais razão e mór necessidade que a Rainha vá ás côrtes, onde por ella e por aquelles que seguem sua vontade se poderá acerca d'isso requerer o que lhes parecer direito e justiça, e eu o não contradirei. Cá em caso que quizesse, hi haverá taes pessoas para sostimento de tamanha justiça e honestidade, que minha resistencia aproveitaria pouco. E quanto ao juramento de que aponta que releve os que seguem minha parte, seja certa que com verdade nunca se achará um só, que para tal obrigação me seja obrigado, e se alguns o são, não é por semelhante força, nem contra suas vontades, mas sómente por criação ou bemfeitoria que de mim tem recebido.» O conde de Barcellos se foi logo a Guimarães, onde fez ajuntar D. Sancho, e o Arcebispo de Braga, e Vasco Fernandes, e Martim Vaz da Cunha, e Pero Gomez d'Abreu, e Lionel de Lima, e Alvaro Pirez de Tavora, e Luiz Alvarez de Souza, que segundo geral opinião seguiam todos a parte da Rainha, e com elles concertou que escusassem sua ida ás côrtes, posto que elle fosse, e que em qualquer forma que a qualquer parte ficasse o Regimento, sempre seria com segurança de suas honras, e esperança de mais seu acrecentamento. CAPITULO XLV _Recado da Rainha ao Infante D. Pedro quando de Coimbra vinha para Lisboa ás côrtes_ O Infante D. Pedro partiu de Coimbra para Lisboa, e com elle álem dos de sua casa, João Gomez da Silva, e D. Fernando de Menezes, e Alvaro Gonçalves de Tayde, e D. Fadrique de Castro, e Fernão Coutinho, irmão do marechal, e Gonçalo Vaz Coutinho, meirinho mór, e Pero de Lemos, e João de Tayde, senhor de Pena Cova, e a gente do Bispo de Coimbra, que faziam numero de mil e oitocentos homens de cavallo, e dois mil e seiscentos de pé, da qual cousa a Rainha foi avisada, e sendo certificada que o Infante havia de Torres Vedras ir a Alanquer para comsigo segundo diziam levar logo El-Rei ás côrtes, e receosa de assi ser, pelo desviar de tal proposito enviou a elle Anrique Pereira, que o topou em Alfazeirão, pedindo-lhe «que na maneira em que ia escusasse sua ida onde El-Rei e ella e seus filhos estavam, assi porque pareceria desacatamento, estando elles tão sós, como por a villa não ser capaz de seu aposentamento, e menos bastante para os manter. E que se sua ida assi era necessaria, que se não podia escusar, que quizesse ir muito aforrado.» Como o Infante isto ouviu disse: «Anrique Pereira, vossa vinda sobre tal caso fôra bem escusada, e verdadeiramente assi me salteam estes accidentes, que não sei que vos responda, sómente dizei á Senhora Rainha, que me doem muito estas sospeitas, e porém saiba que dos que se mais mostram a seu serviço, se deve mais guardar, pois tão erradamente a aconselham, e mais contra mim que desejo mais de a servir que a nojar. E que não fallo no que cumpre ao estado e serviço d'El-Rei meu Senhor; porque em desejar de o lealmente servir e amar, não darei avantagem a nenhum do mundo. E com este recado se tornou Anrique Pereira á Rainha. Seguiu o Infante sua viagem até o Lumiar, onde a petitorio dos da cidade de Lisboa, que ante de sua entrada quizeram fallar primeiro com elle, sobre-esteve alguns dias. Aos quaes com palavras de grande aguardecimento e mercês, tendo respondido, despediu a gente que com elle viera, leixando sómente os seus continos e alguns que para as côrtes vinham ordenados. Lisboa porque seus accordos eram mui difficeis, e para os particulares não havia perfeita auctoridade, deputou doze cidadãos, a que por consentimento de todos o conselho e deliberação de todalas cousas de peso, que então occorriam foi comettido. Os quaes juntos sustancialmente accordaram que o Infante fosse logo declarado por Regedor in solido, sem outra ajuda nem companhia, até El-Rei ser em idade de per si o poder reger. E este accordo foi publicado a todo o povo no refeitorio de S. Domingos, onde logo com vozes e signaes de todos foi sem contradição approvado e consentido. E os cidadãos enviaram logo ao Infante Pero de Serpa, e Martim Çapata, e Ruy Gomez da Grã, e João Carreiro a notificar-lhe o accordo passado, e pedir-lhe que ao outro dia quizesse entrar e ser seu hospede, com fundamento, que primeiro havia de prometter e jurar que logo só sem outra companhia nem ajuda começasse uzar do Regimento inteiramente. O Infante depois de lhes aguardecer sua ida e tenção, lhes disse: «Amigos, sabei que n'este caso acordastes mais o que quizestes, que o que devieis; porque eu n'elle para o que a mim cumpre tambem não posso fazer se não o que devo, que é d'este cargo não me antremeter assi absolutamente, sem meus irmãos e sobrinhos, e sem os procuradores dos tres Estados que para isso são chamados. Porque do contrairo, a uns será desacatamento, e a outros causaria escandalo. Pelo qual me parece que a trigança para isso não é agora necessaria; mas que deveis sobre-ser até as côrtes que serão logo. E o que n'ellas se accordar e determinar, isso será o que se então deve fazer e cumprir». «Senhor, disseram elles, essas justificações de que vossa honestidade se acautella, bem era que cessem assi; mas ellas para este caso já são feitas; porque das cidades e villas, que n'elle hão de dar voz, aqui temos por suas cartas seus consentimentos. E para o cumprimento de vossos irmãos, aqui tendes vosso irmão o Infante D. João que o requere assi e ha por bem. E com os outros já fallastes, que o não contradizem. E por tanto Senhor, vos pedimos que não alongueis o que vos tão justa e devidamente offerecemos. Nem deis causa que de vossa escusa se sigam alvoroços e desconcertos de povo, que serão depois impossiveis, ou mui trabalhosos de concertar.» CAPITULO XLVI _Entrada do Infante D. Pedro em Lisboa, e como ante as côrtes acceitou o Regimento_ E como quer que da vontade do Infante fosse todavia leixar tudo para determinação das côrtes. Porém vendo-se constrangido dos cidadãos, teve conselho com esses principaes que trazia, dos quaes todos foi aconselhado, que ao outro dia entrasse na cidade e fizesse o que ella lhes requeria, pois o contrairo pelas cousas que eram já n'isso passadas, não contradizia a honestidade nem razão. Pelo qual o Infante consentiu no entrar ao outro dia. E defendeu a solemne procissão e outros grandes estrondos e cerimonias com que ordenavam de o receber. Mas que seu recebimento fosse sómente ao costumado que lhe sohiam fazer sem outra ennovação. Ao outro dia entrou o Infante, sendo no caminho recebido do Infante D. João e de todolos fidalgos e pessoas de conta da cidade com gram prazer e alegria. E assi foi levado ás casas do Mestre d'Aviz, que estão junto com a Sé, onde pousou. E ao outro dia, dia de Todolos Santos, foi ouvir missa á Sé, onde lhe foi requerido que o juramento que a cidade tinha acordado, elle o fizesse, como logo fez, nas mãos de D. Alvaro d'Abreu, Bispo d'Evora, onde publicamente jurou e prometeu com as mãos postas sobre os Evangelhos e Cruz, de bem e lealmente reger e defender estes reinos em nome d'El-Rei D. Affonso seu Senhor, até ser em disposição de os per si poder reger e defender, e que então lh'os entregaria livremente e sem contradição nem cautella, e o serviria sempre com amor e lealdade, como bom e leal vassallo. Tardou o ajuntamento das côrtes até os dez dias de Dezembro, onde os Infantes com todolos procuradores sendo juntos nos Paços d'Alcaçova, o Infante D. João se levantou em pé e disse que algumas cousas que a todos ali queria propoer por serviço de Deus e d'El-Rei, e bem do reino, por não estar por então em disposição de per si as poder dizer, encomendou ao doutor Diogo Affonso Mangancha que por elle as dissesse, pedindo-lhes que logo o ouvissem. O doutor que era presente, cessando todo o rumor, propoz uma arenga grande e bem dita, cuja sustancia foi aprovar em nome do Infante D. João, que fôra bem feito enleger o Infante D. Pedro por só Regedor, contradizendo o accordo e determinação das côrtes de Torres Novas, em que o Infante não fôra, e de si mostrou com claras razões, aprovadas por Direito Divino e Humano, e autorizadas por claros exemplos, que mulher não devia ter Regimento. Nem que dois em companhia não deviam reger; mas um só, e para ser um só devia ser o Infante D. Pedro, e que a Rainha servissem e acatassem todos como era razão e o requeria ser mulher e madre de taes dois reis, sangue e virtudes que tinha. Foi por todos geralmente consentido na proposição do doutor, e aprovaram sem contradição o Infante D. Pedro haver só de reger, de que se fez um accordo que testemunharam quatro notairos que a todo eram presentes, Lopo Affonso e Ruy Galvão, e Martim Gil, e Gonçallo Botelho, officiaes da camara e fazenda de El-Rei. O qual accordo foi logo por todos alli assignado, salvo pelo conde d'Arrayollos, que se escusou de o assignar, nem chamou depois ao Infante Regente, mas seu nome; como quer que obedecesse a seus mandados inteiramente, e melhor que alguns que o enlegeram e assignaram. Foi isso mesmo acordado que o Infante fizesse como fez, juramento na fórma do passado, de reger bem o reino e o entregar livremente a El-Rei, como fosse em edade e disposição de o por si reger e deffender. E certo o Infante D. Pedro o fez assi sempre bem, e como devia, que para ser louvado sobre todolos Principes de seu tempo, não lhe falleceu se não ser Rei; porque em Regedor não dava assi as cousas á inteira execução que se requeria. E tudo por temperança e assessego do reino, e por evitar escandalos, odios, invejas a que não pôde fugir, cá em fim o encalçaram com a morte, e com quebra de seu estado, como adiante se dirá. CAPITULO XLVII _Notificação do acordo passado á Rainha, que o não consentiu_ O Infante D. Pedro por si só, e des-hi os outros infantes, condes e fidalgos e procuradores das cidades e villas que foram presentes, por suas cartas notificaram logo á Rainha que estava em Alanquer, todo o passado, com razões e fundamentos de serviço de Deus e d'El-Rei, e grande descanço d'ella. Pedindo-lhe todos com muito acatamento que o houvesse assi por bem e quizesse trazer El-Rei á cidade para lhe ser feita a reverença que lhe todos deviam e desejavam fazer. E para em sua presença se tratarem algumas cousas, que a seu estado e serviço, e bem de seus reinos convinham. Com este recado o Infante enviou á Rainha Alvaro Gonçalvez de Tayde, governador de sua casa, homem prudente e bem razoado, e de que muito fiava. A Rainha recebeu a messagem com signaes de grande tristeza, e por conselho dos que com ella eram, sustancialmente respondeu _que se os Senhores Infantes, condes e povo, revogassem a enleição do Regimento, que era feito ao Infante, e o dessem a ella como eram obrigados, seria contente levar El-Rei á cidade. E d'outra maneira que o não faria_. E ao dar da resposta tomou d'isto estromentos por seu resguardo. Tornou-se Alvaro Gonçalez aos Infantes com esta resposta, e vendo-a contraira a sua determinação, acordaram de enviar a ella com a mesma sustancia Affonso Nogueira, que depois foi Arcebispo de Lisboa, e o ministro de S. Francisco, confessor d'El-Rei, como pessoas esprituaes, e de boas conciencias, os quaes como quer que para a commoverem a consentir no passado lhe dissessem causas e razões para Deus e para o mundo assaz evidentes, ella forçada por ventura de sua fraca humanidade, ou dos errados conselheiros, que em contrairo tinha ouvido, acusou com palavras mui honestas a si mesma, e a dureza de sua conciencia por o não poder fazer. E em fim nem consentiu em o Regimento lhe ser tirado, nem de levar El-Rei, nem dar lugar que fosse por outrem levado a Lisboa, com quanto lhe fossem feitas grandes seguranças de logo El-Rei lhe ser tornado, como na cidade estivesse alguns dias. CAPITULO XLVIII _Ida do Infante D. Anrique á Rainha para leixar vir El-Rei ás côrtes, e lh'o tornarem_ Com este recado foram os Infantes mui descontentes, e o povo mui alvoraçado, e leixadas muitas praticas e tenções que se moveram, finalmente foi acordado que o Infante D. Anrique por derradeiro e principal cumprimento fosse sobre o mesmo caso a ella, como foi. E apartados ambos, o Infante lhe fez uma falla, em que obrou tanto sua virtuosa tenção e bom proposito com que ia, que demoveu a Rainha ao que desejava. D'onde foi de crêr, segundo era virtuosa e amiga de Deus, que se conselheiros apassionados a não torvaram, ella e sua vida e estado conseguiram outro fim de mais sua honra e descanso. Ao outro dia partiu d'Alanquer o Infante D. Anrique com El-Rei e com a Rainha e Principe, para Santo Antonio, camara do Arcebispado de Lisboa, e o Infante D. Pedro, sabendo que a Rainha não resistiria ao Infante D. Anrique, e viria ao que elle quizesse e levava ordenado lhe requerer, se foi de Lisboa a Alverca, d'onde sahiu ao caminho, e com grande acatamento beijou as mãos a El-Rei e á Rainha, como quer que ella se quizera d'isso muito escusar, e assi chegáram a Santo Antonio bespora de Natal, onde foi acordado que El-Rei e a Rainha tivessem a festa. A qual passada, os Infantes todos tres foram por El-Rei e por o Principe seu irmão. Dando primeiro á Rainha segurança por seus assignados, de logo lhe tornarem El-Rei a seu poder, criação e governaça. CAPITULO XLIX _Entrada d'El-Rei em Lisboa para as côrtes_ Veiu El-Rei por agua até Lisboa e foi recebido á Porta d'Oura, e d'alli levado á Sé e aos Paços d'Alcaçova. Indo El-Rei e seu irmão e os Infantes sómente a cavallo, e os condes e outros senhores foram todos ante elles, e esse recebimento foi com tantas cerimonias d'acatamento, obediencia e alegrias assi celebrado, que em qualquer parte do mundo onde mui altamente recebimentos se costumassem fazer, este fôra mui muito louvado, e o Infante D. Pedro foi só o que poz El-Rei a cavallo e o deceu. O que não sómente fez aquelle dia, com assignado acatamento e leal obediencia e grande reverencia, mas sempre depois o continuou e acrecentou, em dez annos que por elle regeu seus Reinos. Cá por si o serviu e fez aos outros servir com tamanho cumprimento de seu estado e serviço que se não póde dizer que outro algum Principe fosse melhor criado no mundo, nem ensinado. Mandou logo o Infante D. Pedro a Ruy Gonçalves de Castel-Branco, védor que fôra d'El-Rei D. Duarte, que fizesse nos paços correger em grande perfeição a salla em que El-Rei havia d'estar nas côrtes. E concordado o dia, que foi aos dez dias de Dezembro de quatro centos e XXXIX, e assentado El-Rei em sua cadeira, e acompanhado de senhores e officiaes, como para auto tão real convinha e se acostumava, o doutor Diogo Affonso Mangancha propoz a arenga em nome d'El-Rei ao povo, cuja principal sustancia foi: «aprovar e confirmar a enleição por elles feita de o Infante D. Pedro para por elle reger, e agardecer-lhes e prometer-lhes mercês, honras e liberdades pela assi fazerem, e assi encommendar ao Infante que o fizesse assi bem e direitamente, como d'elle confiava, e mandar a todos que lh'obedecessem, como á sua propria pessôa». E em acabando o doutor, o Infante D. Pedro com os giolhos em terra beijou a mão a El-Rei, e sua Senhoria lhe entregou logo um páo em que estava atado o sello secreto, em signal e nome de poderio. E como se deu fim a estas cousas, foi logo El-Rei tornado á Rainha sua madre, segando pelos Infantes lhe fôra prometido. O Infante D. Pedro na casa das côrtes fez logo ajuntar os do povo e alguns do conselho, e sendo entre elles em pé, lhes disse com muita gravidade:--«que pelo grande cargo do Regimento que lhe fôra encommendado, era necessario elle fazer de si outro homem».--Pelo qual lhe fez alguns avisados amoestamentos, em signal de sua grande bondade e muita prudencia, para os que bem e direitamente vivessem esperassem d'elle em nome d'El-Rei seu Senhor, bem e mercê, e assi pena e castigo aos que o contrairo fizessem, encommendando-lhes outrosi que o amassem e lhe obedecessem, e quizessem ajuda-lo e deffende-lo com seus corpos e fazendas, assi como elle faria a elles mesmos quando lhes cumprisse. E principalmente que confiassem d'elle que todo o que fizesse seria afim de bem e justiça, em caso que lhes parecesse o contrairo. Ás quaes cousas lhe foi por um deputado respondido, conforme a sua tenção e petitorio, e o Infante descobrindo sua cabeça lh'o agardeceu. O conde de Barcellos mostrava d'este feito não ser contente, e desejoso de haver para si alguma parte do Regimento, e por enfraquecer ao Infante seu poder fez e ordenou certos capitulos em fórma de Regimento, que o Infante havia de ter em sua governança. Pelos quaes todolos feitos principaes tirava de seu juizo e os remetia ás côrtes, que cada anno apontava que se fizessem. O qual Regimento mostrado aos procuradores dos povos, houveram por escusado ennovar-se mais do que tinham acordado, e El-Rei aprovado. De que o conde mostrou ser assáz descontente, e começou logo de requerer a restituição da posse do Arcebispado ao Arcebispo D. Pedro seu cunhado; e porque não podia ser sem prazer e consentimento dos cidadãos, que d'elle tinham apellado para Roma, o Infante D. Pedro por contentar e assessegar vontades contrairas, e tirar inconvenientes e torvaçõas a seu regimento, e assi tambem o Infante D. João, entenderam e trabalharam n'isto muito com diligencias, que pareciam verdadeiras e não fingidas. E em fim a cidade por Pero de Serpa seu cidadão, se escusou de o consentir com muitas razões, em que pareceu que não fallecia serviço de Deus, honestidade e muita justiça. Afirmando, que todavia haviam de seguir sua appellação, durando a qual seria o Arcebispo suspenso, e trabalhariam porque fosse privado, e por esta dureza que os infantes acharam nos cidadãos, pela mais não agravar, houveram por bem leixar por então este requerimento, esperando que depois se faria melhor, como fez. De que o conde de Barcellos não sómente contra os cidadãos, mas contra o Infante principalmente, mostrou grande sentimento, parecendo-lhe que por sua conjuntura e prazer a cidade tinha aquelle esforço de resistir. A estas côrtes entre as outras graças e liberdades que o Infante D. Pedro em nome d'El Rei outorgou ao povo, foi que não houvesse aposentadoria em Lisboa, fazendo estados e casas, em que se El-Rei e sua côrte podessem alojar; e depois se deu assi a Evora e Santarem. CAPITULO L _De como se apontou e aprovou não ser bem El-Rei se criar em poder da Rainha_ Estando já as côrtes e despachos d'ellas em conclusão para os procuradores se poderem ir, um João Gonçalvez, procurador da cidade do Porto, com outro seu parceiro se foram á camara de Lisboa, sendo os officiaes d'ella em vereação. E cuidando os da cidade que iam despedir-se d'elles, como era de cortesia e custume, João Gonçalves disse: «Senhores, a mim e a meu parceiro parece, que vós e todolos outros nossos irmãos e parceiros, que em nome do reino a estas cortes viemos, as daes já por acabadas. E certo muitas cousas, mercês a Deus, se concludiram n'ellas; porque El-Rei nosso Senhor é mui servido, e nós contentes. Porém a principal ficou por requerer e fazer. Sem a qual, todo o que se fez a nosso parecer é nada ou aproveita muito pouco». Os cidadãos enleados de sua proposição, sabendo que era homem d'autoridade, cessaram de suas praticas em que estavam, e seguraram os rostos e as vontades para o ouvir. O qual proseguindo disse: «Porque concludindo brevemente meu proposito, digo-vos que por se escusarem muitos danos e grandes inconvenientes que se não escusam, El-Rei não deve ficar em poder da Rainha como está, e alguns apontarei e os outros mais vós por vossa discrição e saber os entendei. Primeiramente a criação d'El-Rei por ser em poder de mulher, é a elle mui danosa, e sempre por isso ficará fraco e feminado. Que para qualquer homem privado é aleijão sobre todos, quanto mais para Rei. E se as comparações não fossem odiosas, e isto não fosse tão claro, por exemplos bem vo-lo poderia provar. Outrosi de sua creação, por tal maneira está mui evidente o perigo do Infante D. Pedro Regente, e tambem nosso; porque segundo a Senhora Rainha, isto que acordamos sente por sua deshonra e grande quebra de seu estado, como em suas cartas e protestações parece claro, não é duvidar que criaria El-Rei em odio contra o Regente e contra nós, de que ao diante poderia por isso commeter uma grande crueldade, em que não haveria remedio. Porque como naturalmente aquellas cousas que os moços recebem na tenra edade se lhe emprantam no coração e em sua memoria para sempre, esta principalmente se lhe emprantaria muito mais, por lhe ser dita tão a meude, e com tantas lagrimas. Outro dano é a que se deve atalhar o crecimento de despezas desordenadas, a que as rendas do reino não bastáram. Cá umas são necessarias ao Regente para manter seu estado e do reino, e outras cumprem de necessidade a El-Rei e a seu irmão, e outras á Rainha e suas filhas. Com outros inconvenientes que agora são escusados apontarem-se». Aos cidadãos pareceu bem o motivo de João Gonçalves, e fizeram logo avisar os outros procuradores, que logo á tarde foram hi juntos, onde depois de havidas algumas praticas e altercações sobre o caso, accordaram que El-Rei e seu irmão deviam todavia ficar em poder do Infante D. Pedro. Ao qual d'este accordo logo avisaram, pedindo-lhe que o quizesse assi consultar com os Infantes seus irmãos, com os quaes ordenasse que se cumprisse. O Regente depois de ouvir dois cidadãos que a elle sobr'isso foram, lhes respondeu: «Dizei aos cidadãos e procuradores, que lhes rogo muito que cessem d'este movimento, e não me daria persumir-se que eu n'elle cabia por principal, se fôsse devido e necessario; mas eu o digo assi, porque na verdade ei por muito melhor ficar El-Rei meu Senhor e seu irmão em poder de sua madre, que no meu. Assi por satisfazer a sua consolação e contentamento como é razão e está concordado, como tambem por mais minha segurança e descargo, e sua Senhoria moço é, e sujeito como todos a enfermidades e casos mortaes, de que fallecendo, o que nosso Senhor não queira e o defenda, é certo que seria com grande minha tristeza e muita pena, e a mim poderiam dar a culpa de sua morte, e d'hi ávante eu com este cargo tenho tantas cousas em que entender, que a essa não poderia satisfazer como a ella requere e é razão; e que podesse, sabei que queria fugir aos odios dos aios, que eu com tal cargo não posso escusar, especialmente refreando El-Rei e seu irmão em cousas a que sua mocidade os inclinará, em que por ventura mereceram mais emmenda e reprensão que louvor.» Os cidadãos lhe replicaram: «Senhor, quem vos bem conhece e vosso justo juizo e grande saber, sem errar vos póde dizer que d'outra maneira o entendeis, do que o fallaes. E por tanto isto que vos propozemos é assi em nós todos tão determinado para se cumprir, como o mais que fizemos. Cá se o passado foi proveitoso, n'isto ha proveito e necessidade; porque não é razão, nem queira Deus que um tão alto Principe como é El-Rei nosso Senhor, e que em tão pequenos dias nos dá de si tantas esperanças de bem entendido e virtuoso, seja assi creado em tanto aleijão, como é a criação em poder de mulheres. Antes pois em vós para isso ha tantas razões, é razão que o crieis e façaes ensinar em letras e reaes costumes, e o leveis ao monte e á caça, e lhe mostreis por vós o exercicio das armas, e por exemplos e doutrina, e merecimentos da cavallaria. E assi as outras cerimonias, manhas, e cousas que ao estado de um tal Principe convém, assi para os tempos publicos, como secretos, e com isto elle é de tão são e perfeito entender, que conhecerá que o servis bem e lealmente. E por isso vos amará e fará aquelle acrecentamento e mercê, que lhe prazendo a Deus merecereis.» O Regente acalçado n'este caso da necessidade e razão de que se não sabia escusar, disse: «que se fallasse aos Infantes seus irmãos, e o que elles accordassem por melhor, elle o seguiria.» Aos quaes por os procuradores foi logo fallado, e assi aos condes e ás outras pessoas d'estima que eram na côrte. E por todos finalmente foi accordado: «que pospostas todalas cousas e assento passado, El-Rei ficasse em poder do Regente». O que em pessoa lhe foi logo assi notificado. O qual disse: «Certo não por resistir a vosso conselho e determinação, a que folgarei sempre de obedecer. Mas a mim parece que n'este caso o melhor será que a Senhora Rainha e eu andemos pelo reino juntamente, de que se seguirá que sua Senhoria criará El-Rei meu Senhor seu filho, e eu vê-lo-hei e servirei nas cousas que apontaes, quando fôr necessario. E prazendo a Deus, eu o farei por maneira, e com tanto prazer e contentamento d'ella, que sua Senhoria terá razão de conhecer de mim a verdade de que sempre duvidou, e perderá com isso alguns queixumes e escandalos que sem causa lhe fizeram ter contra mim.» E louvando todos aquelle parecer, se foram com elle á Rainha, que ainda era em Santo Antonio, á qual pelo Infante D. Pedro e por os outros Infantes foram mui verdadeiramente ditas todalas cousas e razões que no caso havia para o haver de seguir. Mas ella finalmente não quiz, salvo que lhe ficasse a governança da fazenda juntamente com a criação de seus filhos, referindo-se ao accordo das primeiras côrtes. E que se das rendas para serviço d'El-Rei se houvesse alguma cousa despender, que fosse por sua autoridade e mandado. E como quer que pelos Infantes lhe fossem apontados muitos pejos e inconvenientes para assi não poder ser, e lhe pedissem que quizesse haver por bem o que accordáram, a ella não prouve. E os Infantes vendo sua determinação, se despediram d'ella para ainda consultarem se se acharia algum bom meio com que ella ficasse contente. CAPITULO LI _Como a Rainha teve pratica com os seus principaes sobre a ida dos Infantes a ella e como se foi a Cintra e leixou El-Rei e seu irmão_ Partidos os Infantes, a Rainha a esses principaes que com ella eram notificou logo os apontamentos de sua vinda. E assi a conclusão com que ficara, e quiz d'elles saber o que lhes parecia, dizendo: «Não pode ser mór angustia da que meu coração tem n'este caso. Cá de uma parte o sentimento e nojo que tenho do Infante D. Pedro me faz desejar não haver cousa no mundo para o poder vêr, e d'outra segundo o que sinto, isto é já quasi privarem-me de meus filhos. Cuja natural piedade e grande amor que lhes tenho, me constrange não os leixar. Especialmente me obriga muito parecer-me que segurarei com a graça de Deus suas pessoas, de que teria mór esperança, e com menos receios, que de andarem sem mim em poder do Infante D. Pedro. O qual segundo já descobre sua grande cubica para reinar, quem duvidaria que para o fazer mais livremente, não lhes encurtara mais cedo as vidas. E n'elle ha muitas dessimulações e hipocresias com que tudo saberá mui bem encobrir. Assi que n'estes dois tamanhos extremos não sei qual meio tome, ou ter meus filhos e andar com elles por sua segurança, e ir com o Infante á melhor parte sem outro encarrego, ou leixa-los de todo á disposição de Deus que os guarde, e da fortuna boa ou má que lhes pode vir. O primeiro d'estes bem sinto que é um bom desejo da alma, a que por ventura consirando tudo sem paixão eu devia ser mais conforme. O segundo é apetito do corpo e da honra, em que sinto tamanhas forças, que me inclinam a elle de todo, e n'esta tamanha diferença e torvação a que meu juizo não abasta, quero saber de vós o que vos parece.». Os quaes responderam, dizendo: «Senhora, esta derradeira é a melhor determinação que podeis ter, e o vosso coração para quão real é, não deve soffrer andar sobjeita em poder de um homem vosso imigo, e que segundo o desamor que vos tem, vos fará cada dia mil nojos e abatimentos, e a nós outros que vos servimos, como desesperados d'elle em todo bem e mercê, será razão que nós vamos ás judarias ou fóra do reino, pois havemos ser d'elle pior tratados que judeus. O que não deveis haver por pequena dôr e vituperio vosso, e com isto bem sabeis que ha n'elle praticas e cautellas, para com todo mostrar ao povo que o faz muito pelo contrairo; porque elle não ha mais mester que favor de villãos que o tem por idolo. Pelo qual nosso conselho é, o com que despedistes os Infantes, não aceitardes a criação de vossos filhos sem governardes toda a fazenda, e que pois haveis de ser agravada, que o sejaes de todo, principalmente pois sabeis que a emmenda d'isto se apressa, e não pode já tardar muito. E pelo que ora vossos irmãos vos escrevem de Castella, e assi de Portugal o Priol do Crato e o Marechal, e os outros fidalgos que defendem vossa querella, o podeis mais claramente vêr e afirmar, e para segurança de vossos filhos, sob reverença de vosso juizo, é muito pelo contrairo. Cá para o Infante D. Pedro cumprir seu máo proposito, se o tem de acabar vossos filhos, sabei que vossa presença é mais azo, e a melhor encuberta que para isso pode ter. E por ventura o fará mais levemente, e com menos temor em vosso poder que no seu. E nas enculcas e espias que já agora traz comvosco, de que sabe aqui não sómente o que fallaes, mas o que cuidaes, podereis conjecturar se para tal caso achará ministros. Assi que leixai-lhe todo o Regimento, e os filhos juntamente até que Deus queira». N'este conselho contrariou com razões mui vivas Pero Lourenço d'Almeida, Almotacé Mór do reino, que era presente, desfazendo á Rainha e aos outros conselheiros com fundamentos mui claros as esperanças que tinham de seus irmãos em Castella, e assim dos fidalgos de Portugal. Pedindo-lhe que quizesse acceitar o meio que os Infantes lhe tinham apontado, que segundo a disposição do tempo houve por bom. Mas como a vontade da Rainha, e assi a dos outros estavam para o contrairo determinadas, não aprovaram o conselho de Pero Lourenço, reputando-lhe não a siso mas a fraqueza por se não sahir de sua casa e boa fazenda que tinha em Lisboa. Pelo qual a Rainha determinou partir-se e leixar seus filhos, e levar sómente as filhas comsigo. Isto se passou em Santo Antonio a um sabbado, e logo ao domingo a Rainha mandou chamar secretamente alguns seus de Lisboa, que vieram hi dormir. E passada a meia noite ouviu missa, e fez alevantar os filhos da cama, e tomou El-Rei nos braços, e com muitas lagrimas lhe disse: «Filho e Senhor, praza a Deus por sua piedade que vos guarde e vos dê vida, e a mim não leixe viva e desamparada de vós, como o sou d'El-Rei meu Senhor vosso padre.» E com isto se despediu com tamanho pranto seu e de todos, como se os leixaram soterrados para os nunca mais vêr. El-Rei salteou-se com tamanha novidade, e posto que para isso não teve edade de que se esperasse tamanho accordo, não lhe falleceu natural prudencia e discrição com que n'aquella hora, com grande repouso e segurança, e por palavras doces e avisadas, soube confortar a Rainha sua madre, que se partiu para Cintra, de que o aviso foi logo a Lisboa, e o Infante D. Anrique como o soube se partiu a gram pressa pela alcançar no caminho, e já não pôde senão no logar d'onde a não pôde mover de seu proposito, e o Infante D. Pedro e o Infante D. João foram logo a Santo Antonio e trouxeram El-Rei e o Principe seu irmão a Lisboa, onde a cada um deram casa com seus officiaes apartados, porque até alli se serviam ambos juntamente, e n'estes movimentos foi tanta a prudencia e resguardo d'El-Rei, que sendo de tão pequena edade, e tendo tanto amor e affeição á Rainha sua madre, como era razão, nunca por se vêr d'ella apartado foi ninguem que n'elle contra o Infante podesse conhecer algum signal de má vontade. Nem que reprendesse ou louvasse os feitos de um nem do outro, nem com seu escandalo. CAPITULO LII _Como Lisboa commetteu de querer fazer uma estatua ao Infante D. Pedro pelo beneficio do relevamento das aposentadorias, e do que lhe respondeu_ Os procuradores do reino com isto acabado se foram, e os cidadãos de Lisboa por memoria da mercê e liberdade que lhes o Infante em nome d'El-Rei fizera, quando lhes tirou as aposentadorias, como já disse, lhe quizeram com seu consentimento ordenar uma estatua de pedra sobre a porta dos Estáos, que o Infante novamente mandou fazer, e perguntando-lhe em que fórma a haveria por melhor que estivesse, o Infante com o rostro carregado de tristeza e pensamento, o desviou e defendeu, dizendo-lhes, como por verdadeira prophecia de sua fim: «Se a minha imagem alli estivesse esculpida, ainda virão dias que em galardão d'essa mercê que vos fiz e d'outras muitas que com a graça de Deus espero de vos fazer, vossos filhos a derribariam, e com as pedras lhe quebrariam os olhos. E por tanto Deus por isso me dê bom galardão, cá de vós em fim não espero outro se não este que digo, e por ventura outro pior.» Das quaes palavras foram então os cidadãos tão maravilhados, como foram depois certificados que dizia verdade, quando assi o viram cumprir. E seguiu-se mais depois, para se presumir que o Infante alguma revelação tinha de sua morte, que em Coimbra indo elle quando regia, e o Infante D. Anrique para a porta de S. Bento, que sae á ponte onde estão as armas da cidade, que são uma mulher posta sobre um calez, com uma corôa na cabeça, e a uma teta um leão, e a outra uma serpe, o Infante D. Anrique olhando-as, disse pelo contentar: «Bem se póde Senhor Irmão comparar a vós esta figura, pois tambem de uma parte daes mantimento ao leão, que é Castella, e da outra a Portugal, que é a serpe do nosso timbre.» «Verdade é, disse o Infante D. Pedro; mas vêde-a melhor, e consirae que está sobre calez, que significa sangue, em que mais claro parece, que de meus trabalhos, serviços e beneficios, esse ha de ser meu galardão.» E certo, com quanto este Principe era mui catholico, devoto e justo, e em que havia muitas outras virtudes, assi se seguiu como ao diante se dirá. CAPITULO LIII _Como a Rainha sobre suas cousas se querellou aos Infantes d'Aragão seus irmãos, e da embaixada que enviaram_ A Rainha como dos effeitos da esperança que tinha, e lhe davam para reger, começou de se vêr no reino enganada, dobrou-se n'ella o desejo de seu proposito. E por um modo já de victoria e vingança, assi no reino como fóra d'elle, para cobrar o Regimento dobrou suas forças e deligencias, para o qual enviou notificar e se queixar aos Infantes d'Aragão e á Rainha de Castella seus irmãos, como por força lhe tiravam o Regimento, e a titoria de seus filhos. E assi o aggravo e abatimento que n'isso recebia, fazendo-os participantes na injuria do caso pelos mais obrigar e acender para o que desejava, crendo ella que por serem já retornados em Castella, logo teriam o poder onde tivessem a vontade, e que com seu receio em Portugal se não faria a cousa em que elles recebessem descontentamento. Mas os Infantes seus irmãos sabendo a pouca firmeza e segurança que tinham em Castella, e que lhe não cumpria fazer por então novas alterações contra si, tomaram a parte mais branda, e enviaram aos Infantes d'estes reinos com sua embaixada um D. Affonso Anrique, bisneto d'El-Rei D. Anrique, que da sua parte com palavras honestas lhes rogou em sustancia «que sobre a determinação das primeiras côrtes não fizessem com a Rainha sua irmã alguma outra enovação.» Ao qual os Infantes responderam «que á Rainha não era feita injuria nem desserviço, nem lhe tiravam senão cuidados e trabalhos, a que suas forças por ser mulher não abastavam, e cargos de conciencia, o que ella devia querer; porque o Regimento do reino a ella de razão e direito não pertencia. E a quem direitamente convinha e o saberia e poderia fazer o tinham dado.» Com esta resposta se houve D. Affonso por despachado, e se foi a Cintra por vêr a Rainha. E posto que fosse homem de grande linhagem, não havia porém n'elle aquelle tento, discrição e prudencia, que a pessoa de tal cargo pertencia. Porque em lugar de poer a vontade da Rainha em bom assessego e temperar suas paixões, acendeu-lh'as muito mais com esperanças vãs, que lhe deu de ser por força, e com ajuda de seus irmãos restetuida e vingada. Offerecendo-se para o caso com gentes de cavallo e de pé, como principal capitão do reino, e para logo a vir servir não tomou largo prazo. E com estes enganos em que a Rainha levava gloria, tirou d'ella prata dinheiro, e tornou-se para Castella onde deu resposta aos Infantes. Os quaes, porque suas cousas não estavam em desejada segurança para fazer movimentos, ao menos por não parecer que desamparavam de todo os feitos da Rainha sua irmã, tornaram a enviar ao Infante D. Pedro e aos Infantes seus irmãos um Daião de Segovia, pedindo-lhe com palavras mansas e honestas que guardasem á Rainha o acatamento e reverencia que ella merecia, e lhe tivessem aquelle amor que deviam. De que os Infantes foram mui contentes depois em todo ao cumprir, para o qual encommendaram ao Daião que fosse fallar com ella para que quizesse repousar a vontade, e não dar causa a boliços, de que tanto mal se podia seguir; porque com isso ella seria servida e acatada, como se El-Rei seu marido fosse vivo. O Daião lhe foi fallar e a aconselhou, dizendo-lhe «que por quanto os feitos de seus irmãos não estavam em Castella n'aquelle assessego que convinha para n'elles de certo remedio ter firme esperança, que em tanto temperasse e dessimulasse cá a seus negocios o melhor que podesse; porque concertados os dos Infantes em Castella, em Portugal se faria dos seus o que ella desejava.» CAPITULO LIV _De como se entendeu na redempção do Infante D. Fernando, e do que se seguiu_ E porque não pareça que a redempção e soltura do Infante D. Fernando, depois da morte d'El-Rei seu irmão se esqueceu, é de saber, que com todalas mudanças e divisões passadas entre a Rainha e o Infante D. Pedro, sempre d'elles foi muito lembrada e negociada, cuja deliberação foi muitas vezes aos mouros cometida por grande somma de dinheiro ou de captivos, e por outras maneiras. Nas quaes elles não quizeram nunca entender, e se mostravam que entendiam, logo se mudavam em outras sentenças, afirmando-se finalmente que lhes dessem Ceuta segundo fórma do contrato que o Infante D. Anrique e os outros capitães do palanque de Tangere com elles fizeram. Pelo qual a Rainha e o Infante D. Pedro ante de seus desvairos, por se satisfazer ao Infante D. Fernando e cumprir a vontade d'ElRei D. Duarte, que em seu testamento o leixara muito encommendado, determinaram com os do conselho, e houveram por bem, que pospostas amoestações do Papa e conselhos de muitos Principes christãos que o contrariavam, que Ceuta todavia se desse por elle, e sobre isso passaram em nome d'El-Rei as cartas e procurações necessarias, assignadas por ambos, com as quaes foram por embaixadores Martim de Tavora, reposteiro mór d'El-Rei, e o licenceado Gomes Eanes, desembargador na casa do civel. E em chegando a Arzilla acertou-se que morreu Çalabençala, que fôra senhor de Ceuta ao tempo que se tomou, e a este tempo era alcaide de Tangere e Arzilla, com o qual os ditos embaixadores haviam de tratar. Depois de sua morte ficou seu irmão Muley Buquer portector do filho maior do dito Çalabençala, o qual seu filho tambem por dependencia do mesmo caso do cerco de Tangere era captivo, e fôra dado por arrefens em Portugal. E querendo os embaixadores entender com elle no negocio, certificando-o da abastança do poder d'El-Rei que para o caso levavam, elle se escusou dizendo: «Christãos, sabei que Ceuta é tamanha cousa, que em quanto D. Fernando conde de Villa Real, capitão d'ella fôr terceiro para a entregar, nunca crerei que vós trazeis desejo d'alguma certo conclusão, cá por elle não perder tal senhorio com tanta honra como agora em Ceuta tem, bem sei que mostrando que não desobedece a vosso Rei e seus governadores, sempre buscará corados achaques e cautellas para a nunca entregar». E depois de os embaixadores lhe desfazerem com razões sua opinião e haverem entre si sobre o caso muitas altercações, finalmente se concordaram «que Muley Buquer notificasse a vinda dos embaixadores a Muley Buzaceri, Rei de Fez, em cujo poder o Infante estava, e que se n'este feito desejava boa conclusão, que tornasse o Infante a Arzilla, e como alli fosse, se o conde D. Fernando logo por elle não entregasse Ceuta como era concordado, que então se teriam outros meios com que sem escusa se fizesse». D'esta conclusão foi o mouro contente; sómente disse «que emquanto elle n'isto entendia, elles se viessem a este reino e com El-Rei procurassem que da sua tornada em Africa viesse logo com elles outra pessoa, e com taes provisões a que Ceuta logo se entregasse e tirasse do poder o conde». Com este apontamento se tornaram os embaixadores, e por acharem a Rainha e o Infante D. Pedro no meio dos móres desvairos sobre o Regimento, sobre-esteve o negocio até sem contenda se dar inteiramente ao Infante como já disse, o qual ouviu logo os ditos embaixadores em conselho, onde foi determinado por algumas causas em que se fundaram, mais de piedade do dito Infante que de honra do reino, que Ceuta sem mais debate se desse por elle. E por quanto a duvida de Muley Buquer, quando lhe pareceu que o conde D. Fernando, por não perder tal governança retardaria a entrega de Ceuta se houve por razoada, acordaram que a D. Fernando de Castro, Governador da casa do Infante D. Anrique, e a D. Alvaro seu filho, a ambos e a cada um fosse entregue a cidade, e n'ella estivessem para a darem, e receberem por ella o dito Infante, e que a este reino se viesse o conde D. Fernando, a quem se daria por a capitania e governança d'ella sua dina satisfação, e que Martim de Tavora e o licenceado estivessem por negoceadores em Arzilla. D. Fernando de Castro era homem de nobre sangue, prudente, e de grande conselho, e tinha boa fazenda; e porque houve este encargo por de muita honra para si e sua linhagem, ordenou sua ida para o mar e para a terra, o mais perfeita e honradamente que pôde. Especialmente o moveu a isso com maior cuidado e diligencia levar esperança que o Infante D. Fernando havia de casar com uma de suas filhas, de que estando em Fez lhe enviara sua certidão, consirando que seu conselho e auctoridade lhe podia por isso em sua deliberação muito aproveitar, e D. Fernando para o mais obrigar havendo sua soltura por certa, lhe levava feitos á sua custa todolos corregimentos que para a pessôa, cama e mesa de um tal Princepe eram pertencentes. E assi levava navios sobresalentes para o Infante e o conde, e os moradores de Ceuta n'elles se virem, além d'outros em que para sua segurança levava mil e duzentos homens, entre os quaes iam muitos fidalgos e gentis homens da casa d'El-Rei e dos Infantes, e com tudo prestes, partiu D. Fernando de Lisboa no mez d'Abril de mil e quatrocentos e quarenta e um, com vento de boa viagem. E indo os navios de sua companhia espalhados pelo mar: além do Cabo de São Vicente, acertou-se que uma carraca de Genoa, que andava d'armada, veiu demandar e afferrar o navio em que o dito D. Fernando ia, o qual como quer que logo por razões d'amizade e depois com armas e grande esforço quanto foi possivel se defendesse, finalmente o navio com a mais força da carraca foi entrado e roubado, e D. Fernando acabou n'elle sua vida de uma bombarda, e os genoeses achando-se com tal rica presa, receiosos da emmenda, porque a outra frota já vinha sobr'elles, meteram suas vellas e tomaram o mar por sua salvação. E quando os outros navios da conserva acudiram sobre o navio do capitão e o acharam morto, vendo que a vingança de sua morte já não estava em seu poder, tornaram-se a Tavila, onde em São Francisco enterraram seu corpo, com assaz honra e lagrimas. D. Alvaro seu filho a que a capitania e negocio do Infante ficava encommendada, sem alguma mais detença se foi d'hi a Ceuta, d'onde escreveu ao Regente o triste caso passado, pedindo-lhe ordenança e provisão para o futuro. E posto que então fosse mancebo, por haver n'elle muita discrição, foi-lhe respondido com abastante commissão para o acabar como D. Fernando seu pae: mas Lazaraque-Martin governador d'El-Rei de Fez, não sómente não deu logar que o Infante fosse tirado de Fez para Arzilla, ou para algum outro poder, como por Muley Buquer lhe fôra já requerido, mas ainda quando depois soube que a vontade d'El-Rei e do Regente era que todavia Ceuta se desse, e que o conde D. Fernando se fosse, para que D. Alvaro de Castro com poderes abastantes era vindo, disse «que era contente se lh'a entregassem primeiro, e que para segurança dos christãos, elle por Mafamede e por sua Lei faria juramento, em que como d'ella fosse apoderado, logo entregaria o Infante D. Fernando, e que esta era segurança assi abastante e segura para os christãos, que com ella não deviam ter d'elle receio nem sospeita alguma»! Mas porque sua fiança por suas maldades, pouca verdade e tirania, se houve por duvidosa, não foi razão acceitar-se seu meio. E como quer que outros muitos seguros meios e mui razoados lhe fossem apontados, nunca em algum d'elles quiz condescender. E o que de sua contrariedade e contumacia se pôde n'este caso verdadeiramente entender, foi que claramente lhe pesava entregar-se Ceuta aos mouros, e nos modos que sempre teve para se não acabar pareceu mui claro que a causa d'isto era, porque com a necessidade da guerra de Ceuta ocupava assi os sentidos do povo infiel, que lhe não dava lugar acabarem de poder entender e remediar os grandes males de sua tirania. Da qual cousa sendo o Regente certificado, havendo a negociação por escusada, mandou a D. Alvaro e aos embaixadores que se viessem ao reino, como vieram, com fundamento de se consultar algum outro remedio para a deliberação do Infante. A qual como quer que o Infante D. Pedro, segundo suas mostranças e continuas diligencias, pareceu que sobre todalas cousas desejava, nunca porém sobre ella se apontou e requereu meio por evidente que fosse, que podesse vir a effeito. CAPITULO LV _Como a Rainha D. Lianor se partiu de Cintra para Almeirim contra vontade d'El-Rei e dos Infantes, e como se El-Rei foi a Santarem, e do que se seguiu_ A Rainha D. Lianor era em Cintra, e por lhe parecer que o Infante D. Pedro tinha alli taes guardas e avisos em sua casa, que para seus negocios era quasi privada de sua liberdade, sendo para isto induzida dos que seguiam sua vontade, e principalmente do Priol do Crato D. Frei Nuno de Goes; determinou para com mais licença e mór segurança enviar e receber recados, assi de Portugal como de Castella, de se ir como foi para Almeirim, junto com Santarem. Do que aos Infantes muito desaprouve; porque sentiam que taes mudanças não eram por serviço d'El-Rei nem bem e assessego do reino, e para haver alguma mais causa e razão de as temperar, accordaram que El-Rei se fosse como foi logo a Santarem; porque estando tão acerca da côrte haveria menos disposição e mais receio de tratarem com ella e a moverem a mais alvoroços. E d'alli enviou logo o Infante D. Pedro á Rainha o doutor Vasco Fernandes, pedindo-lhe por mercê que assessegasse o corpo e o coração no reino, em que seria servida e acatada como era razão, e não ouvisse máos conselheiros que a moviam para cousas que eram muito dano de sua alma, e grande quebra de seu estado, e assi o Infante em nome d'El-Rei mandou publicamente deffender a alguns fidalgos e outras pessoas que se logo juntaram com a Rainha, que sob graves penas a não conselhassem nem induzissem para o contrairo do que cumpria ao bem, paz e assessego de seus reinos, de que os mais por serem confiados em suas esperanças vãs, faziam pouca estima. O Infante D. Pedro com quanto sabia que no reino havia pessoas principaes a elle contrairas, e que sostinham e favoreciam a parte da Rainha; porém todo seu receio causavam os Infantes irmãos da Rainha, que a este tempo eram retornados em Castella, e a governavam juntamente com a pessoa d'El-Rei, especialmente porque depois de a Rainha ser em Almeirim, foram suas cartas tomadas em Punhete e trazidas ao Infante, em que pareceu que apertava muito com seus irmãos que fizessem a estes reinos mostrança de guerra, e não geralmente a todos; mas sómente ao Infante, e a aquelles que contradiziam seu Regimento; porque com o temor d'isso, o povo por ventura revogaria o Regimento ao Infante, e o dariam a ella; mas o Infante crendo que assi fosse, e para lhes em alguma maneira melhor resistir e impedir seu poder, trabalhou de se liar com o Condestabre D. Alvaro de Luna, e com o Mestre d'Alcantara D. Goterre, que eram ambos liados contrairos aos Infantes, e tinham o favor d'El-Rei e muito poder em Castella. CAPITULO LVI _Liança do Infante D. Pedro com o Condestabre e Mestre d'Alcantara de Castella, contra os Infantes d'Aragão, e das ajudas que lhe deu_ E para melhor entendimento d'este passo é de saber, que no tempo que El-Rei D. João o segundo reinava em Castella, era Condestabre este D. Alvaro de Luna, homem abastado de saber e malicia, com pouco temor de Deus. O qual se soube assi haver, que em todalas cousas ora redundassem em seu acrecentamento, ora em destruição e dano d'outros, El-Rei satisfazia sempre a sua vontade. E porque os Infantes filhos d'El-Rei D. Fernando d'Aragão, que então prosperavam em Castella por sua autoridade e valor, contrariavam as execuções de seu desordenado e máo desejo, por elle ter mais soltura para obrar o que queria, assi trabalhou com El-Rei que os desamou grandemente e lançou fóra do reino. E porque o Condestabre depois fez fazer individamente algumas cruezas e desterros contra muitos grandes do reino, e parecia que El-Rei vivia em sua sobjeição, era de todos mui desamado, pelo qual alguns grandes ordenaram e trataram que os Infantes retornassem outra vez como tornaram em Castella, e que o estado e pessoa d'El-Rei se governasse por elles, e o Condestabre fosse como foi fóra da côrte. Outrosi porque o Mestre d'Alcantara D. Goterre por engano tomara a villa d'Alcantara, e por força o Mestrado a D. João Souto Maior seu tio, que era Mestre e feitura dos Infantes, e prendeu n'ella o Infante D. Pedro, irmão dos Infantes. Era pôr isto em grande odio a elles, que com suas forças procuravam em todo sua destruição, os quaes Condestabre e Mestre d'Alcantara, por ambos serem tocados de uma necessidade e temor, ambos entre si e suas terras e gentes tomaram uma liança e remedio para o resistir como o fazíam, e sentindo assi isto o Infante D. Pedro, por enfraquentar o poder dos Infantes, enviou por seus messegeiros secretos offerecer contra elles o favor e ajudas d'estes reinos ao Condestabre e Mestre. O que elles mui alegremente receberam; porque conheceram que o Infante não tanto por aproveitar a elles, como por a mesma sua necessidade se movia a isso. Pelo qual muitas vezes lhe requereram depois ajudas e soccorros contra os Infantes, e elle por accordo e conselho dos principaes d'estes reinos lh'o deu algumas vezes assaz poderosamente, havendo primeiro consentimento e autoridade d'El-Rei de Castella, para sem quebrantamento das pazes que tinham o poder direitamente fazer. Porque com quanto El-Rei era em poder e governança dos Infantes d'Aragão, o Condestabre por suas astucias e maneiras, sempre trazia em sua côrte e camara taes pessoas, que secretamente requeriam a El-Rei todo o que compria por seu favor e amparo. Ao que El-Rei pela grande affeição que lhe tinha, folgava muito de satisfazer, e enviou para isso ao Infante D. Pedro mui autenticas aquellas provisões que sentiu ser necessarias, por cuja virtude o Infante em favor do Mestre d'Alcantara, e contra a tenção do Infante D. Anrique Mestre de Santiago, enviou a Castella por vezes e tempos, muita gente abastecer Magazella e Bemquerença, fortalezas do Mestrado d'Alcantara, e assi tomar a villa de Salanqua, que estava pelo Infante D. Anrique, e por outra vez enviou outrosi muita gente d'estes reinos a Andaluzia, em ajuda e soccorro do Condestabre, e em desfavor e dano do mesmo Infante D. Anrique, e lhe tomaram Carmona com seu grande destroço. E outra vez a requerimento d'El-Rei D. João, quando cercou os Infantes em Olmedo, lhe enviou o Infante D. Pedro em sua ajuda muita e mui nobre gente d'estes reinos, e por capitão principal seu filho primogenito o Senhor D. Pedro, que depois foi e morreu intitulado Rei d'Aragão. E segundo a universal opinião dos que n'este caso sãmente entenderam, se creu que segundo os Infantes eram amados em Castella, se não tomaram assi claramente o Infante D. Pedro por contrairo, e não se pozeram em mostranças de o guerrear e destruir, como mostraram, e o Infante não impedira seu poder, que seu valor e prosperidade d'elles não descahira em Castella como descahiu, nem a Rainha D. Lianor sua irmã, enganada de suas promessas e esperanças impossiveis, não acabara sua vida em desterro com tanta necessidade e tristeza, e tão individa a suas bondades e estado, como ao diante se dirá. CAPITULO LVII _Conselhos que o Infante D. Pedro teve sobre o assessego e segurança d'esta cousas, e como a Rainha fingidamente se concordou com elle_ Mas o Infante D. Pedro sentindo com estas mudanças o reino diviso, teve sobr'isso conselho, no qual se accordou para atalhar ás praticas que a Rainha e os outros fidalgos poderiam ter com o conde de Barcellos, que da divisão era cabeça principal, e para qualquer outra segurança, que o Infante D. Anrique se fosse, como foi á cidade de Vizeu; porque com seu receio os recados não passassem, e que para o dano que a estes reinos poderia vir de Castella por meio dos Infantes, enviassem como enviaram uma pessoa secreta a El-Rei, que o não consentisse, o que muito aproveitou. E o cargo da guarda e assessego da Rainha ficou ao Infante D. Pedro, que pelas estreitezas que n'isso poz, os que eram com ella em Almeirim, que com novo alvoroço a vieram servir, se acharam para suas honras e fazendas de todo atalhados, e mui enganados nas esperanças de supetos acrecentamentos, que cada um logo para si maginava. Pelo qual com necessidade e razões assaz evidentes pediam á Rainha que emquanto as cousas não se despunham como para seu recurso cumpria, tratasse com o Infante D. Pedro alguma amizade e fosse fingida, com que em tanto ella e elles se remedeassem e provessem a suas vidas e fazendas, e a podessem melhor ao diante servir. A Rainha aprovou este conselho, e para o cumprir mandou por o ministro da Ordem de S. Francisco, e por Ruy Galvão, secretario, tratar amizade com o Infante, mostrando fingidamente que seu desejo era já poer em assessego sua alma, e esquecer-se de todo o passado. O Infante d'este recado crendo ser verdadeiro, foi mui alegre, e o acceitou com palavras de grande cortesia e contentamento, e deu por isso muitas graças a Deus. E da concordia que entre si por então tomaram passáram seus assignados, que o Infante logo mandou divulgar pelo reino, que pelo haverem por bem e geral assessego, faziam por isso geralmente a Deus muitos signaes de devoção, e ao mundo de grande alegria, e assi o notificou a Castella. E confiando n'esta concordia, que havia por certa e não fingida, mandou tirar as guardas dos portos para que livremente podessem á Rainha ir e vir messegeiros e servidores d'onde quizessem sem pena nem receio. CAPITULO LVIII _Como o conde de Barcellos desdisse muito á Rainha esta concordia com o Infante, em caso que não fosse verdadeira_ Foi o conde de Barcellos d'esta concordia por via geral certificado, mas não se alvoroçou nada; porque da secreta dessimulação com que se fizera, foi logo pela Rainha avisado: porém elle temendo-se da prudencia e saber do Infante D. Pedro, e não segurando n'isso da constancia da Rainha, accordou com os fidalgos da sua parte de lhe notificarem o erro e desfavor que para seus feitos em tal concordia fizera, em caso que fosse fingida, de que se seguira os que desejavam seu serviço, vendo-a em poder do Regente, não ousarem de a servir, e que para isso, porque mais em breve se executasse o que desejava, ella mui secretamente se devia vir ao Crato, onde tinha mui certo o Priol com suas fortalezas a seu serviço. E que d'alli poderia seguramente passar o Tejo e entrar na Beira, onde o Marechal por ser comarcão, com outros fidalgos e gentes se iriam para ella, e que o conde com todolos outros fidalgos outrosi lhe acudiriam e a recolheriam em suas terras, que logo começaria de reger, e que da execução e obra d'esta empresa os Infantes seus irmãos, e assi todolos outros seus servidores tomariam mais esforço e desejo de a proseguir. Este recado foi assi secretamente trazido á Rainha, que o Regente não houve d'elle algum sentimento, e ella com os de seu conselho a quem o mostrou e louvou, e houve por bom, o fez logo saber ao Priol do Crato. O qual como era homem de muitos dias e grande experiencia e siso, houve o feito por sem fundamento e muito duvidoso. E assi lhe respondeu em muitas e boas palavras, e em fim que se de todo em todo sua vontade quizesse forçar as armadas de tão vivas razões, como lhe mandou para o ella não cometer, que elle estava prestes de a receber onde ella quizesse, e para isso lhe offerecia a perdição de sua vida, honra, e fazenda, que elle não podia escusar. CAPITULO LIX _Como o Priol do Crato consentiu em receber a Rainha em suas fortalezas_ Esta resposta do Priol a que a Rainha com razão dava grande credito, suspendeu e amansou muito seu alvoroço; e porém de todo avisou logo ao conde de Barcellos, o qual por meio d'Aires Gonçalves seu secretario, acabou com o Priol que pospostos seus pejos todavia recebesse a Rainha. Desfazendo-lhe os inconvenientes que apontara, com promessas e esperanças, e seguranças falsas com que lhe cegaram o verdadeiro juizo, para o que ajudaram muito dois filhos do Priol, homens mancebos, que sostinham a parte e tenção do conde, que lhes mostrava abrirem-se caminhos de suas honras, e grandes acrecentamentos. O Priol do Crato assi como determinou de receber a Rainha em suas terras, assi ordenou logo d'abastecer, o mais encobertamente que pôde suas fortalezas, e a Rainha mandou a todoslos seus, e assi a outros d'El-Rei em que tinha confiança, que se percebessem de cavallos e d'outras cousas necessarias para caminho, e a verdade d'este fundamento era para esta sua partida; como quer que ella fingidamente dava a entender que os percebia para a acompanharem até o mosteiro da Batalha, onde queria fazer o saimento a El-Rei seu marido, para que dessimuladamente mandou lá fazer algum percebimento. D'estas mudanças foi o Regente algum tanto sabedor; mas confiando na concordia que entre elles era feita, e por não mostrar que com achaques a rompia, não quiz sobre uma cousa nem outra fazer novas alterações; e porém elle não era em certo sabedor que a Rainha se queria partir para o Crato. CAPITULO LX _Como o conde de Barcellos fez liança com os Infantes d'Aragão, e como foi por isso muito prasmado_ E o conde de Barcellos sentindo como as cousas se chegavam a rompimento, sendo duvidoso da fim que haveria, acordou de se liar como liou com El-Rei de Navarra e Infante D. Anrique, irmãos da Rainha, concordando entre si suas capitulações de serem amigos d'amigos, e imigos de imigos, e com ajuda certa de gentes d'armas, que cada uns dariam aos outros, quando a suas necessidades e afrontas cumprisse. D'estas lianças foi logo o reino todo sabedor e mui espantado, especialmente mostraram d'isso grande sentimento o Infante D. João seu genro, e o Infante D. Anrique ambos seus irmãos. E o Infante D. João lh'o enviou muito estranhar por Vasco Gil seu confessor, que depois foi Bispo d'Evora, e o Infante D. Anrique por Fernão Lopez d'Azevedo, Commendador Mór de Christo. Aos quaes o conde respondeu, que não desistiria do que tinha feito, e que sabia bem o que lhe cumpria. E assi o disse ao conde d'Arrayollos seu filho, que a elle sobr'isso foi em pessoa. Mas o conde d'Ourem tambem seu filho, que a este tempo era mui á banda do Infante D. Pedro, não quiz n'este caso entender, não leixando de o haver por feio, e mostrando que se os feitos viessem a rompimento, que elle seria por serviço do Regente contra seu padre; mas o que das maneiras d'ambos, pae e filho poderam os prudentes conjeiturar e entender, sempre pareceu que no começo dos movimentos, entre elles se concordara o pae ficar á parte da Rainha, e o filho á do Infante D. Pedro; porque a qualquer d'estas parcealidades a que a fortuna boa se inclinasse, cada um ter n'ella um principal que remedeasse o outro, e que em tanto cada um tirasse da banda que servisse todo o que para sua honra e proveito podesse; porque em fim, toda havia de ficar em uma só herança. Nem se creu que o conde de Barcellos inventara estas lianças e pendores, salvo por meter o reino em necessidade de sua pessoa e casa, e lh'a haverem de compoer com villas e terras como fizeram; porque da Rainha não havia tão urgentes razões que o a isso obrigassem, e dos Infantes d'Aragão muito menos. A Rainha ante que de sua pessoa fizesse alguma mudança, mandou a Castella secretamente, por Mossem Gabriel de Lourenço, seu capellão mór, todalas joias d'ouro, prata e pedraria que tinha, que eram assaz muitas e boas; porque álem das que trouxe d'Aragão, houve com o movel d'El-Rei seu marido todas as que ficaram por seu fallecimento, e foram postas no Castello d'Albuquerque, que era Villa do Infante D. Anrique de Castella. D'onde lhe vieram muitas a Almeirim, que ella secretamente mandou pedir para sua partida. CAPITULO LXI _Como o Infante D. Anrique se viu com o conde de Barcellos seu irmão para o concordar com o Infante D. Pedro_ O Infante D. Anrique de Portugal para atalhar os azos de mais desaccordos e uniões, se foi a Vizeu como disse; e porque sentiu que no assessego do conde de Barcellos, segurava o assessego do reino e da Rainha, viu-se com elle e com os de sua valia no mosteiro de S. João de Tarouca, junto com Lamego, onde sobre muitas praticas e altercações que todos entre si houveram, nunca o Infante pôde acabar que o conde se decesse de sua opinião, nem pôde nunca por elle saber algum evidente fundamento d'agravo, ou contentamento descuberto que para isso tivesse; porque todalas que dava eram razões tão fracas, que por si mesmas se desfaziam, e em fim o Infante se despediu d'elle com algum temporizamento, até se vêr com os Infantes seus irmãos. Mas por mais enfraquentar seu partido, tirou logo de sua liança o marechal, e Martin Vaz da Cunha, e João de Gouvêa, que eram fidalgos da Beira, e os levou comsigo. CAPITULO LXII _De como veiu a El-Rei embaixada de Castella, e como foi recebida_ Ao mez d'Outubro d'este anno de mil e quatro centos e quarenta, estando ainda El-Rei em Santarem e a Rainha em Almeirim, lhe veiu d'El-Rei de Castella uma grande embaixada, em que vieram por pessoas principaes D. Affonso, filho bastardo d'El-Rei de Navarra, que depois morreu duque de Villa Formosa, e um Bispo de Coria, pessoa de muita autoridade, e outros letrados, e por esta embaixada ser a primeira que veiu a El-Rei, foi da côrte muito bem recebida, e d'El-Rei e dos Infantes com muitas grandezas cerimoniada, e a sustancia do que a El-Rei e ao Regente, e assi aos Infantes e conselho propozeram, se fundou em duas cousas. Uma em se queixarem de danos e tomadias que os portuguezes fizeram por mar e por terra aos naturaes de Castella, e a outra mais principal acerca das cousas da Rainha e restituição do Regimento em que sobre todo mais insistiram, e tambem pediam a El-Rei em nome da Rainha D. Lianor, com que já tinha fallado, que a leixasse ir para Castella, mostrando que não queria estar no reino para que tantos males se aparelhavam; porque ao tempo que esta embaixada sahiu da côrte de Castella, os Infantes d'Aragão ainda regiam e governavam a pessoa d'El-Rei; e por isso se fez lá, e propoz cá com as gravezas, protestações e cautellas, que elles em nome d'El-Rei ordenaram. Affigurando que por ventura o povo de Portugal, com receio de futuras guerras que elles tocavam, desistiria da parte do Infante ácêrca do Regimento, e seguiria a da Rainha. E para os embaixadores fazerem mais geral esta impressão, pediram ao Regente logar e licença para esta mesma embaixada irem dar pelas cidades e villas, e assi aos principaes do reino; mas o Regente por ser cousa nova e então desacostumada o não outorgou nem consentiu, e se escusou com a semrazão d'elles, e com outras razões assaz justas e honestas; e emfim o Regente para lhe responder, tomou alguns dias d'espaço, dentro dos quaes a todalas pessoas principaes do reino que não eram presentes, enviou pedir conselho por escripto, com o trellado da embaixada. E esta ordenança guardou sempre o Infante emquanto regeu, de nunca em cousas sustanciaes tomar conclusão sem conselho escripto dos presentes e ausentes, e depois que houve a resposta de todos, e se conformou com o que melhor pareceu, respondeu aos embaixadores: «Quanto ás tomadias, que para justificação d'ellas se pozessem juizes de uma parte e da outra nos estremos danificados. E quanto ás cousas que tocavam á Rainha, que El-Rei enviaria seus embaixadores a El-Rei de Castella com tal resposta com que devesse ser satisfeito.» E sobr'isso foi enviado Lopo Affonso Secretario, com fundamento de dilatar e temporisar o negocio; porque o Regente soube secretamente por o Bispo de Coria, embaixador, que esta embaixada em que elle vinha era de cumprimento para a Rainha e para os Infantes d'Aragão, mas não da vontade d'El-Rei de Castella, a quem parecia bem a maneira que no Regimento do reino se tivera, e assi não leixarem á disposição da Rainha a criação d'El-Rei, pois era mulher; porque elle mesmo Rei sentia em si quanto mal recebera por em semelhante caso ser criado em poder da Rainha D. Caterina sua madre, e que o contrairo não se esperava de taes Principes como eram os filhos d'El-Rei D. João. E á Rainha enviou o Regente em nome d'El-Rei pedir com palavras de muito acatamento, e com razões que faziam assaz por sua honra, honestidade e proveito, que houvesse por bem não consentir que de seus reinos se fosse para os estranhos. Mas isto não lhe assessegou a vontade que tinha para se ir; porque assi pela determinação passada da partida, como pelo novo alvoroço que d'alguns dos embaixadores para isso recebeu, determinou muito mais em si de o fazer. Os embaixadores não se houveram d'esta resposta do Regente por satisfeitos nem despedidos, antes disseram que traziam em mandado de seu Rei que sem determinada resposta de todalas cousas, sem outro seu especial mandado não se partissem, e a carta em que isto se continha d'hi a dois dias a mandaram mostrar ao Regente, o qual como prudente consirou que taes cartas e instrucções, tão sem razão e vindas tão brevemente se compilavam em Almeirim, cá poderiam trazer de Castella signaes d'El-Rei em branco e sêllos de fóra, sobre que poeriam o que quizessem, como fizeram. E para d'isto ser certificado, avisou d'isso a gram pressa o Condestabre D. Alvaro de Luna, o qual era fóra da côrte; e porém por seus meios secretos, que com El-Rei trazia, soube logo d'elle que nunca tal mandára, de que logo certificou o Regente por carta da propria mão d'El-Rei: pelo qual o Regente n'esta confiança determinou com alguma mais graveza despedir como despediu os embaixadores, e lhes mandou «que pois eram respondidos, que se fossem embora dos reinos e côrte d'El-Rei seu Senhor.» Mas elles não se despacharam assi brevemente, que ainda não estivessem em Santarem, ao tempo que a Rainha se partiu para o Crato, como ao diante se dirá. CAPITULO LXIII _Como o Infante D. Anrique procurou de trazer o Priol do Crato a serviço e prazer do Infante D. Pedro, e do que n'isso passou_ O Infante D. Anrique de Portugal, sentindo que um dos principaes esforços que a Rainha tomava para seu movimento, era o Priol do Crato, por atalhar a isso virtuosamente como em todo era seu costume, por seu messegeiro o enviou muito reprender d'isso, e da opinião que tomara contra o Infante D. Pedro, e lhe mandou que logo em pessoa se viesse desculpar ao Regente, e d'hi em diante o servisse lealmente como a elle mesmo. O Priol foi d'este recado mui triste por duas causas a elle mui contrairas, uma por viver com o Infante D. Anrique, a quem havia por grande caso e perigo não obedecer inteiramente. E a outra fallecer á Rainha e ao conde de Barcellos, a quem se offerecera já com suas fortalezas; e finalmente deliberou de não ir ao Infante D. Pedro por si, escusando-se por velhice e doença, e de se mandar desculpar fingidamente por seu filho Fernão de Goes, e todavia de cumprir com a Rainha o que lhe tinha promettido. Veiu Fernão de Goes a Santarem, e offereceu a embaixada falsa de seu pae por sua crença ao Regente, mostrando quere-lo desculpar do passado, offerecendo-se em todo o que estava por vir ao que elle mandasse, e pediu logo ao Regente licença para ir fallar á Rainha; porque lhe queria dizer o em que ficava com elle, e assi lhe pedir que d'hi em diante nas cousas que fossem contra vontade e serviço do Infante, ella não se quizesse servir do Priol seu pae, nem d'elles seus filhos, salvo nas cousas em que os Infantes a servissem. Mas isto em seu coração e proposito era muito em contrairo; porque como foi ante a Rainha, concertou com ella sem differença o dia e hora de sua partida, que havia de ser logo em bespora de todolos Santos á noite. E que elle e seu irmão Pedro de Goes viriam por ella, com maior resguardo e com a mais gente que podessem. E com isto se partiu, e o notificou ao Priol, que com muita diligencia e maior dissimulação fez logo prestes a mais gente que pôde. Dando publicamente a entender por não fazer na terra suspeita nem alvoroço, que já eram concertados com o Regente, e que para o mais obrigarem o queriam ir honradamente servir, de que toda a terra mostrou ser mui alegre. CAPITULO LXIV _De como se a Rainha aconselhou sobre a ida para o Crato, e como emfim posposto o conselho se partiu_ E com quanto a Rainha no cuidado d'estes cuidados temporaes, tinha para este mundo assás que entender; porém porque era Senhora muito devota e de mui religiosa vida, não se partiam de sua alma para o outro outros espirituaes, que a fizeram mandar ao mosteiro de Bemfica da Ordem de S. Domingos, por um Frei João de Moura, seu confessor, padre de grandes dias e doutrina, e assi de mui santa vida, para com elle em confissão consultar esta secreta mudança. E depois d'ella lhe dizer com largas palavras sua determinação, elle lh'a contrariou com outras mais de tanta verdade e prudencia, que pareceu dizer-lh'as como por espirito divino. E certo assi foi, porque ella em seu desterro, desamparo e desaventuras, que pelo não crêr depois padeceu, sentiu bem que o padre a aconselhava mais que homem, e como de mandado de Deus, e d'isso ella ao diante se acusava muitas vezes. E como quer que Frei João não pôde em sua presença afrouxar a tenção da Rainha, porém porque ella era de bom siso e mui são proposito, fizeram depois suas palavras no coração d'ella tamanha casa, que assentava já em sua vontade não se partir, pesando-lhe muito da palavra que dera aos filhos do Priol. Os quaes a noite de bespora de todolos Santos que tinham posto, foram com suas gentes acerca de Almeirim, e por não serem sentidos leixaram toda a gente ao Paul da Atella, e elles ambos, cada um com seu escudeiro e seu page, chegaram aos paços já de noite, com cuja chegada e vista a Rainha recebeu muita e descuberta tristeza, e lh'a confessou logo. Do que elles ficaram mui torvados, porque a conheceram já mudada de todo, e sobre isso houveram entre si muitos debates, em que a Rainha finalmente foi dos agravos d'elles vencida, e quiz contra sua vontade satisfazer ao que tinha prometido. E d'este segredo era em sua casa sómente sabedor Diogo Gonçalves Lobo, seu vedor, que com muita trigança deu aviamento a todo o que cumpria para sua partida. A Rainha depois de concertar com elles o feito como seria, ás nove horas da noite se tornou com grande assessego e dessimulação a seu estrado, e hi deu boas noites sem algum alvoroço, e ás dez horas se sahiu por uma porta secreta contra a coutada, e com ella a Infante D. Joanna, de mama, e sua ama que a criava, e Diogo Gonçalves, e João Vaz Marreca, seu escrivão da puridade, e Maria Dias sua covilheira, e Briatyz Corelho, donzela Aragoesa. E estas pessoas a acompanharam até o Paul, onde ficara a gente, com que logo seguiram seu caminho, e não muito depressa por lhes não aturarem as bestas em que iam, e ao outro dia ás dez horas chegaram sem decer á Ponte do Sor. E hi comeram e repousaram um pouco. E em anoitecendo foram no Crato, onde o Priol já a estava esperando, e a recebeu com grande alegria, dando-lhe as chaves de todas as fortalezas, com razões de grande humildade e muita obediencia. E ella o agasalhou com palavras e mostranças de grande aguardecimento, e bem conformes a sua necessidade. CAPITULO LXV _Do que fizeram os da Rainha, depois que souberam de sua partida_ A gente da Rainha que ficou em Almeirim, como passou meia noite sentiram grande rumor pelo lugar, e ainda com claras vozes dobradas sem certo autor, que diziam. «Fugir, fugir do Infante D. Pedro, que vos vem prender». De que cada um não guardando a certa ordem em suas vestiduras, com grande pressa se soccorriam á Rainha como a casa da vida. E como o pranto de suas criadas e creados lhes davam certidão de sua partida e ausencia, assi cada um desamparado de siso e d'accordo, se iam chorando e mal dizendo a suas vidas por essas charnecas. E como foi de dia, os que foram certos do caminho que a Rainha levava e poderam, a seguiram. E entre os mais principaes foram D. Affonso, senhor de Cascaes, já velho, e sua mulher D. Maria de Vasconcellos, e D. Fernando seu filho. Como quer que D. Affonso forçado da mulher e do filho se partiu; porque abraçando-se com a terra, e com muitas lagrimas dizia: «Leixai-me comer a esta terra que me criou, e a que não fui nem sou tredor. Não me desterreis este corpo sem culpa, nem lhe deis sepultura em terras alheias». Mas em fim o levaram. CAPITULO LXVI _De como o Regente foi avisado da secreta partida da Rainha, e do que logo sobr'isso se fez_ E o Regente pouco mais de meia noite foi avisado da partida da Rainha sumariamente, por Gil Pirez de Resende, contador de Santarem, sem lhe saber dizer o caminho que fizera, nem se levara consigo as Infantes, e a poucas horas tornou o Infante a ser certificado do caminho da Rainha, e como levava consigo a Infante D. Joana, e leixava doente a Infante D. Lianor, que depois foi Imperatriz, e d'esta mudança mostrou o Regente grande tristeza e sentimento, ainda que alguns diziam que era fingida; e porém mandou logo a Martim Affonso de Miranda com notairos, a escrever e segurar todo o que se achasse em Almeirim. E o que se conhecesse por da Rainha, que era já sómente roupa de camas e pannos, mandou entregar aos officiaes d'El-Rei, e as outras cousas dos seus se entregaram por recadação a um Martim d'Almeida, cavalleiro de Santarem. E foi logo a Almeirim pela Infante D. Lianor, que entregou a D. Guiomar de Castro, que foi sua aia até o tempo que d'estes reinos partiu para Allemanha. E assi mandou logo o Regente em nome d'El-Rei caminho do Crato Diogo Fernandes d'Almeida, que era védor da fazenda, pedindo á Rainha, sua madre com mui brandas razões e mui fortes seguranças que se tornasse, e que elle e os Infantes iriam por ella, e se o não quizesse fazer que ao menos entregasse a Infante D. Joana. E que se isto tudo denegasse, que presentes notairos que consigo levava lhe fizesse em nome d'El-Rei protestações a não ser obrigado elle, nem o reino dar-lhe dote nem arras, nem outra cousa alguma. Diogo Fernandes aceitou a embaixada; mas segundo o que d'elle se suspeitou, elle a não cumpriu como devera; porque chegou sómente a Alter do Chão, uma légua do Crato, e d'alli se tornou para Santarem, sem obrar nada do que lhe mandáram; dando por razão que alli fôra por maneira informado da tenção da Rainha para não fazer nada do que lhe ia requerer, que houvera por escusado ir mais adiante; mas a geral opinião foi que por ser casado com uma filha do Priol do Crato, elle era sabedor de todolos movimento passados, e que folgou de não fazer por si cousa em que a Rainha recebesse nojo nem desserviço contra seu sogro. O Regente avisou logo d'este caso os Infantes seus irmãos, e assi os grandes, e cidades e villas principaes do reino, requerendo-os e percebendo-os com seus corpos e armas, para serviço d'El-Rei e defensão do reino, crendo que a Rainha não faria de si tal movimento sem muito esforço e atrevimento de Portugal e de Castella. E no provimento d'estas cartas e avisos, poz o Regente tanta diligencia, que em dia de todolos Santos ante das missas foram todas feitas e enviadas, e assi uma sua e de sua mão á Rainha, que não aproveitou, em que lhe pediu muito por mercê que se tornasse, prometendo-lhe que com sua tornada elle faria quanto ella mandasse. Os embaixadores de Castella eram ainda a este tempo em Santarem como disse; de que o Regente por seu descargo e limpeza houve prazer; porque sabia que a elles era mui claro quanto elle procurava por seu assessego d'ella, e os mandou logo chamar, e em saindo para a missa lhes fez com muita autoridade uma falla de sua desculpa acerca da partida da Rainha, rogando-lhes que pois se fôra tão sem conselho e tanto contra o que cumpria a seu estado, e sem licença d'El-Rei seu filho, fizessem com ella que ante de sair do reino se tornasse á côrte, com grandes prometimentos de elle em seus feitos fazer tudo o em que ella recebesse contentamento, prazer e serviço: e d'isto para seu resguardo pediu estromentos. N'este dia e nos outros logo seguintes, trouxeram ao Regente presos muitos dos que d'Almeirim se iam para a Rainha, e os que achava serem seus moradores, logo os mandava todos soltar com liberdade e licença segura de a irem servir se quizessem, salvo um João Paez Cantor, e Diogo de Pedrosa, que eram casados com criadas da Rainha, aos quaes por haver n'elles alguma sospeita, que estando o Regente nos paços de Santarem tratavam de o matarem á bésta, foi dado tormento d'açoutes nos pés, e por não confessarem culpa que os obrigasse a outra maior pena, os mandou soltar. O Regente por segurar as comarcas do reino em que tinha alguma suspeita, encomendou a da Beira ao Infante D. Anrique, e a d'entre Tejo e Odiana ao Infante D. João. E mandou á cidade do Porto Ayres Gomez da Silva, para com a cidade fazer defensa e resistencia a quaesquer rebates que n'aquella comarca sobreviessem. E assim mandou que aos do Crato não fosse em todo o reino dado mantimento, mais do que cumprisse á Rainha, e a vinte pessoas que a servissem, de que se ella muito aggravou. CAPITULO LXVII _Do que a Rainha fez depois de ser no Crato_ A Rainha como foi no Crato, logo d'hi enviou por todo o reino cartas, que já d'Almeirim levava feitas, em que sustancialmente se escusava de sua mudança, e acusava por ella o Regente e suas asperezas, encomendando e requerendo a todos com sombras d'ameaças de guerras e males do reino, que lhe tornassem o Regimento e o tirassem ao Infante, contra quem apontava cousas em que parecia não reger como devia. E porque o reino todo, especialmente o povo, eram inclinados á parte do Infante, foram os que receberam suas cartas tão indinados contra a Rainha, e tratavam tão mal os primeiros messegeiros d'ellas, que os segundos temendo taes escarmentos, haviam por melhor escondel-as e não apresental-as. E o Infante D. Pedro d'estas cartas da Rainha que viu, houve muito nojo, e mostrou grande sentimento; porque infamavam em alguns passos sua conciencia e autoridade, e por modo de desculpa e limpeza sua, escreveu a Lisboa como a cabeça do reino, as forças de suas culpas que se n'ellas continham. Escusando-se de cada uma particularmente, com a verdade de sua innocencia. CAPITULO LXVIII _Como falleciam os mantimentos á Rainha e ao Priol do Crato_ E o Priol do Crato não se proveu de tantos mantimentos como lhe eram para tal caso necessarios, enganado nas esperanças do conde de Barcellos, e dos outros fidalgos da Beira, que prometeram tanto que a Rainha fosse em suas terras, que elles em pessoa com gentes e provimentos em abastança, seriam logo com ella, ao que nenhum d'elles quiz nem pôde satisfazer, como quer que para isso fossem da Rainha e do Priol mui afincadamente requeridos, e por este caso os mantimentos recolhidos lhes começaram de fallecer, especialmente carnes e pescados, e para os haver, pela estreita guarda e defesa que para isso havia não tinha já esperança nem remedio. Pelo qual conveiu á Rainha com palavras assaz piedozas pedir ao Infante D. João, que estava em Extremoz, que alevantasse a defesa e lhe leixasse ir mantimentos dos logares de redor. Mas o Infante escusando-se de o fazer lhe respondeu acusando com muita graveza e temperança seu movimento. Em especial de poer sua honra, seu estado, e sua honestidade em poder do Priol e de seus filhos, que não tinham no reino fama de muito honestos, pedindo-lhe em fim que para escusar semelhantes necessidades e outras maiores, se quizesse tornar, do que ella não curou. CAPITULO LXIX _De uma embaixada d'El-Rei d'Aragão e de Napoles que veiu ao Infante D. Pedro sobre os feitos da Rainha_ Estando a Rainha no Crato, chegou a Santarem ao Infante D. Pedro com embaixada d'El-Rei D. Affonso, Rei d'Aragão e de Napoles, sobre cousas da Rainha sua irmã, um Bispo de Segorve, pessoa em que havia muita doutrina e grande auctoridade. E apontou alguns meios de concordia entre ambos, o que o Regente por conselho que sobre isso teve, respondeu: «Que para se tomar n'elles conclusão boa e honesta, como esperava em Deus que tomaria, era necessario a Rainha ser presente, ou ao menos em algum logar de suas terras, com tal repouso e assessego que não parecesse fugida. E para isso que elle antes de tudo se fosse á Rainha, e como com ella em cada uma d'estas maneiras acabasse sua tornada, se tornasse a elle. E que sobre isso se ajuntariam com elle os Infantes seus irmãos, e os do conselho d'El-Rei nosso Senhor. E praticariam ácêrca dos meios apontados, e se concordariam por seu meio no que mais honesto e de razão parecesse. E que se a Rainha não quizesse tornar, que elle d'hi seguisse embora sua viagem e escusasse sua vinda mais a elle.» Ao Bispo pareceu bem o motivo do Regente, e com isso se foi á Rainha; a qual porque não approvou nenhuma das cousas que lhe aconselhava, se despediu d'ella e se partiu para seu Rei sem conclusão certa do porque viera. CAPITULO LXX _De como o Regente determinou pôr cêrco ao Crato e ás outras fortalezas do Priol, e a que pessoas os cêrcos foram encommendados_ O Infante D. Pedro por recados e cartas da Rainha e do Priol que foram tomados e trazidos a elle dos portos que se guardavam, foi certificado como procuravam metter gentes d'armas de Castella em Portugal, e bastecer as fortalezas que sustinham sua voz com armas e mantimentos de fóra, e assi se fazerem alguns alevantamentos no reino contrairos a seu Regimento, para que soube certo que em uma parte e na outra se faziam trigosos percebimentos, e consirando camanho dano se seguiria a dar-se logar a isso, e não se atalhar, determinou com accôrdo dos Infantes, com quanto era entrada de inverno, de logo se poer cêrco ao Crato e ás outras fortalezas do Priol, e cobra-las por força ou partido, como mais fôsse possivel. Para que logo mandou perceber o reino, que a isso não foi negligente. E encommendou-se o cerco e tomada do castelo de Beluer a Lopo d'Almeida, que depois foi por El-Rei feito primeiro conde d'Abrantes, e assi que tomasse e segurasse os celleiros das terras chãs do Priol. E assi se encommendou o cerco da Amieira ao capitão Alvaro Vaz d'Almada, conde d'Abranches, ordenando a cada um as gentes e apparelhos que cumpriam. E foi accordado que o Regente e o Infante D. João, e condes d'Ourem e d'Arrayollos fossem sobre o Crato. Mandou o Regente outrosi em nome d'El-Rei fazer e pôr editos publicos, com pena de morte e perdimento de bens, a todos aquelles que estivessem no Crato e nas fortalezas do Priol, se dentro de dez dias não se sahissem, salvo as vinte pessoas á Rainha ordenadas, e assi com promessa de perdão de todos os casos aos que a El-Rei logo se viessem. Exceptuando alguns poucos a que expressamente o tal perdão não se estendia, em que entrava o Priol e seus filhos. Tomou Lopo d'Almeida com tal cuidado o cerco e tomada de Beluer, que por seus engenhos, forças e combates poz o castello e gente d'elle em tanta necessidade e affronta, que conveiu ao alcaide, que se chamava João Lopez de Nobrega, bom homem e esforçado cavalleiro, depois de fazer muita resistencia, com grande dano dos cercadores, concertar-se e entregar o castello com segurança sua e dos cercados, tomando primeiro certos dias de tregoa, em que como bom servidor pediu socorro ao Priol, e por lh'o não poder dar, entregou por seu mandado o castello a XVII dias de Dezembro de mil quatro centos e quarenta. O capitão Alvaro Vaz a que o cerco da Amieira, como disse, era encarregado, partiu de Lisboa por terra com sua gente d'armas e de pé, que era muita e mui bem concertada, e assim com as artilherias e provisões que para o cerco convinham, e todo posto em mui segura e singular ordenança, fazendo-o assi como homem que o vira e passara em outros reinos já muitas vezes. E tambem folgou de o ordenar, assi por dar a entender n'este pequeno cerco o que faria em outros maiores se lh'os encomendassem. CAPITULO LXXI _Como El-Rei quiz vêr e viu o capitão na ordenança de guerra em que vinha_ Viera-se El-Rei a Alemquer, porque Santarem onde estava, começou de poerse mal de pestenensa; e posto que fosse de tão pequena edade, porém bem inclinado de sua propria natureza, que o provera de mui nobre e mui grande coração, desejou muito de vêr o capitão e sua gente na ordenança de guerra em que vinham, e sentindo-lhe Alvaro Gonçalvez d'Arayde, seu aio, este vivo argulho e desejo, louvou-lh'o muito. E disse que era bem que cumprisse; mas por não errar em seu serviço e estado, indo de proposito vêr uma sua cousa tão pequena, seria bem que como d'acerto fosse á caça, ao campo d'entre a Castanheira e Villa-Nova, e que alli como de recontro veria o capitão e a gente que então havia de passar. E a outro dia andando alli El-Rei com seus galgos e gaviães, assomou o capitão, e sabendo já que El-Rei o queria vêr, apurou ainda muito mais sua ordenança, e de sua pessoa com seus pages armados se concertou em grande perfeição. Porque n'aquelle auto d'armas, por seu braço e por esperimentadas ardidezas passadas, a elle n'este reino se dava muito louvor; e tanto que foi atravez d'onde o El-Rei olhava, se apartou só da gente, armado sobre uma facanea, e com grande alegria e desenvoltura se lançou fóra d'ella, e a pé foi beijar as mãos a El-Rei, e lhe disse: «Senhor, assi como eu sou o primeiro que vossa Senhoria vê n'estes habitos, assi prazendo a Deus não serei eu n'elles o segundo, em todo o que cumprir por vosso serviço e por defensão de vossos reinos.» El-Rei folgou muito de o vêr, e com palavras e contenenças lhe fez mais honra e mór acolhimento do que de sua pouca edade se esperava, e assi se despediu o capitão e seguiu sua viagem até á Amieira, que logo cercou e combateu até que a tomou. E n'este cerco não aconteceram cousas assignadas para escrever; porém houve algumas cousas d'agoiro, que por sua novidade tocarei brevemente. Porque na hora que ali aconteceram, porque pareciam mui duvidosas, se tomaram d'ellas testemunhos publicos e mui autorizados. Uma foi que em se acabando d'assentar o cerco, desceu á vista de todos tres vezes uma aguia do céo sobre um ninho de cegonha, que sobre as casas do Priol estava, e das duas vezes levou dois cegonhos novos, e da terceira não ficou o pae, que para a perdição do Priol e dos filhos foi triste prognostico. A outra foi que a pedra do primeiro tiro de polvora que com um quartão se fez, deu por um escudo das armas do Priol que estava sobre a porta da villa, e só sem outra quebradura o desapegou das mãos de dois anjos que o tinham e o levou ao chão em pedaços. A outra foi que o segundo tiro que se fez matou um homem, sobre cujo corpo estando já na egreja para se soterrar, deu outra vez o terceiro tiro, e em um escano em que jazia o tornou a espedaçar. CAPITULO LXXII _Como a Rainha meteu de Castella gente d'armas n'estes reinos para se bastecer, e do que fizeram_ Sendo a Rainha e o Priol atalhados para dos logares vizinhos nem do reino já não haverem mantimentos, e assi sentindo já o engano que de seus alliados em seu movimento receberam, não ficou aberta outra porta d'esperança, de soccorro e provisão senão a de Castella. Pelo qual a peso de suas joias e baixellas, mandaram para soldo vir ao Crato um D. Affonso Anriquez, que estava em Castella na villa d'Alconchel, com até sessenta de cavallo e cento homens de pé, com os quaes, e com os do Crato antes de receberem mais impedimentos e affrontas, trabalharam de por força se bastecer de trigo, cevada, e gados pelos logares d'arredor, entre os quaes foi Cabeça da Vide, que D. Affonso foi barrejar e roubar com cento e LXXX de cavallo e duzentos de pé, e recolheu o despojo ao Crato, sem haver no logar nem no caminho outra resistencia, salvo a que os d'Alter do Chão lhe quizeram fazer, que por não serem cautelosos no auto da guerra foram tambem de D. Affonso desbaratados, e alguns de uma parte e da outra mortos e muitos feridos, com que todo o reino e principalmente os d'aquella comarca foram para os do Crato mui indinados, e da Rainha mui descontentes. O Infante D. Pedro constrangido e nojado d'estas entradas e correduras que pelo reino assi soltamente se faziam, apressou por isso mais sua partida. E acompanhado de muita gente que o veiu servir, partiu de Santarem caminho d'Aviz, onde com o Infante D. João e condes d'Ourem e d'Arrayollos tinha concertado seu ajuntamento, para hi terem conselho sobre o que fariam; porque o Infante D. Anrique era na Beira para a defender, como se disse. CAPITULO LXXIII _Da resposta que o Regente houve d'algumas cousas que com sua embaixada enviou a Roma requerer_ Em se o Regente alongando em uns casaes, que se dizem o Couto, entre Santarem e Aviz, chegaram a elle Ruy da Cunha, Priol de Santa Maria de Guimarães, e o Provincial do Carmo D. João, Bispo que depois foi de Ceuta e da Guarda, que vinham de Roma, onde foram enviados por embaixadores ao Papa Eugenio; os quaes entre as outras cousas que requereram e trouxeram concedidas, foi _vivae vocis oraculo_ a despensação para El-Rei poder casar com D. Isabel, filha maior do Infante D. Pedro. E não veiu em escripto; porque a Rainha D. Lianor sentindo que não podia fazer maior nojo, que em lhe estorvar este casamento, trabalhou com El-Rei e Rainha de Castella, e com El-Rei d'Aragão e de Napoles, e com El-Rei de Navarra, todos seus irmãos, que por algumas razões que sem muito fundamento allegaram, fizessem com o Papa que por alguma maneira não outorgasse a despensação para o dito casamento necessaria. O que elles todos fizeram por seus embaixadores com muita instancia, e por tanto o Papa por não desprezar a tantos e taes Reis, houve então por bom expediente não outorgar a despensação em escripto por não ser publica, e a concedeu aos embaixadores em secreto, _vivae vocis oraculo_, como disse, para o casamento se poder logo fazer, e depois lh'a mandar por Bula patente, como mandou por Fernão Lopez d'Azevedo, Commendador Mór de Christo, que lá tornou por embaixador. E assi trouxeram mais por Bulla expedida, em como o Papa isentou para sempre as administrações de Tuy e d'Olivença dos Bispados de Tuy e de Badalhouce, a que eram em Castella d'antigamente sobgeitas, e assi houve o Mestrado d'Aviz d'estes reinos por isento do Mestrado de Calatrava, e o Mestrado de Santiago por isento da Ordem d'Ucrés, que são em Castella, a cuja obediencia de primeiro fundamento eram obrigados. E poz aos Reis de Castella silencio perpetuo, com estreitas censuras e graves excommunhões, se mais o contrairo requeressem, como até então sempre requereram. E certo esta graça estimou muito o Regente; porque sabia que em vida d'El-Rei D. João seu padre, e d'El-Rei D. Duarte seu irmão, com quanto isto sempre desejaram e requereram com rasões e causas mui evidentes e sustanciaes, nunca os Papas que n'aquelles tempos foram, em caso que lhes parecesse razão, com receios d'agravos e importunações dos Reis de Castella o ousaram outorgar, e depois até agora sempre isso esteve e está em pacifico effeito. CAPITULO LXXIV _Como em se accordando o cêrco do Crato soube o Regente que a Rainha D. Lianor era partida do Crato para Castella, e como todavia seguiu, e do que se fez_ Chegou o Regente a Aviz, onde de muitas partes lhe accudiu muita gente, para a qual com quanto no reino havia grande careza de mantimentos, houve porém d'elles alli muita abastança. E sendo certificado que o Infante D. João seria com elle bespora de Natal, lhe leixou a villa para seu aposentamento. E na ribeira de Seda se foi alojar no campo, onde os Infantes e conde d'Ourem e conde d'Arrayollos, com outros senhores e fidalgos do conselho se viram. E logo todos consultaram ácêrca do que fariam, em que depois de muitos debates, finalmente se accordaram com o Infante D. João, que disse: «Que ante de tudo á Rainha por uma pessoa honrada fosse primeiro pedido e requerido que se tornasse para suas terras, ou para outro qualquer logar que ella quizesse não sendo sospeito, com todalas seguranças que ella pedisse, e que elles todos iriam por ella e a serviriam e acatariam como ella merecia, por ser mulher e madre de dois seus naturaes Reis e Senhores, e que se ella o quizesse fazer, todo seu trabalho o houvessem n'isso por bem empregado; porque com isso o menos ficaria por acabar, e que quando ella esto não houvesse por bem, que então fossem cercar e combater o Crato até o tomarem por força, ou como melhor podessem, guardando sempre qualquer casa ou torre em que a Rainha e a Infante estivessem, por acatamento e reverença de sua real pessoa e estado, cá era razão apagar-se logo aquella pequena brasa; porque d'ella se não seguisse ao reino outro incendio e dano maior.» A Rainha como foi certificada que os Infantes determinavam ir cerca-la, vendo que o conde de Barcellos e os outros fidalgos se escusavam de ir por ella e a servir como ficaram, quizera-se logo partir do Crato para Castella; mas foi aconselhada que por agravar mais seu caso não o fizesse até os Infantes serem já em caminho contra ella; porque então pareceria razão faze-lo; pois poderiam dizer que com temor de a não prenderem ou deshonrarem o fazia, pelo qual tanto que soube que elles moviam seu arraial da Ribeira de Seda contra o Crato, ella na noite em que amanheceu dia de S. Thomás, que vem a XXIX de Dezembro, de mil e quatrocentos e quarenta e um, se partiu para Albuquerque, e foram principaes em sua companhia o Priol do Crato e D. Affonso Anriquez, e D. Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando, seu filho, e alguns outros; porque a mais gente ficou no castello do Crato com Gonçalo da Silveira e Vasco da Silveira, filhos de Nuno Martins da Silveira, a que a guarda de todo ficou encomendada. E estes acabaram depois em serviço da Rainha suas vidas em Castella, e assi os ditos D. Affonso e D. Fernando, e o Priol do Crato, que no Agosto seguinte falleceram em Çamora. Alguns moradores do Crato e principaes, comquanto alli estavam sobjeitos ao Priol, eram porém servidores secretos do Regente. E como sentiram a partida da Rainha, fizeram logo dois avisos, um ao Regente do caso como passara, e outro a Garcia Rodriguez de Siqueira, Comendador Mór d'Aviz, que era capitão em Alter, para que fosse logo como foi por meio e engenho d'elles cobrar a villa, e depois de se bem apoderar d'ella e a segurar com fortes palanques do dano que os do castello lhe poderiam fazer, o notificou logo aos Infantes, que acordaram enviar logo a Gonçalo da Silveira, e a Vasco da Silveira, Vasco Martins de Mello, por ser casado com uma sua irmã, filha tambem de Nuno Martinz da Silveira, para que os aconselhasse como o tempo e razão requeria e que sem mais resistencia entregassem o castello. Mas Gonçallo da Silveira, sobre quem a defensão principalmente pendia, se escusou da entrega, como fidalgo em que pareceu que havia bondade, lealdade e discrição, e o coração lhe não fallecia. Com este recado tornou Vasco Martinz aos Infantes, que não leixaram de seguir seu caminho até serem sobre o logar; porque receiaram que a Rainha com gente e mantimentos de Castella bastecesse os logares, pois n'elles com essa esperança leixava sua gente. O conde d'Ourem com a gente de Lisboa se aposentou dentro na villa, e os Infantes fóra em torno do castello, onde em chegando fizeram publico alardo com toda a gente, em que se acharam doze mil homens de peleja com muita artilharia, que logo foi assentada em ordenança de combate, de que os mais do castello tomáram grande desmaio; e porém ante d'algum cometimento, o Regente mandou outra vez por o dito Vasco Martinz requerer Gonçallo da Silveira que entregasse o castello e se tornasse para El-Rei que lhe faria muita mercê, e serviria seu officio d'escrivão da Puridade como o fôra seu pae, e que seu irmão seria acrecentado com outras abastanças e razões, de que Gonçalo da Silveira algum tanto vencido com prazer dos Infantes, tomou assento que o não combatessem por X dias, dentro dos quaes se a Rainha depois de ser requerida por elle, lhe não desse soccorro e ajuda com que bem se podessem defender que elle entregaria a fortaleza, e que se lh'o desse, que elle aquelle trabalho e outro maior soffreria até, morrer por seu serviço. Foi logo a Rainha de todo esto avisada por Gonçalo Annes, criado do Priol e alcaide do Crato, que como prudente messegeiro, lhe disse mui largamente as difficuldades que havia na defensão do castello, por ser tamanho e contra tal e tanta gente, e enfraquentou muito com vivas razões a esperança que a Rainha lhe dava, e tinha em uns oitocentos homens d'armas que a Rainha de Castella sua irmã lhe mandara para isso offerecer, dizendo-lhe «que estes não eram pagos nem juntos, e estavam ainda em Castella por suas casas. E que por tantos favores de pães, de que os Infantes seus irmãos enganosamente a basteciam, não abastavam para tal tempo e tamanha necessidade, e que em caso que esta gente e outra mais os quizesse soccorrer, que pois não podia ser pelo céo, menos seria pela terra em que por todalas partes havia tanta e tão forte resistencia, que era impossivel ou assignada sandice fazer-se.» E emfim a Rainha com o Priol visto todo, accordaram que o castello se entregasse, para que logo mandou Pero de Goes seu filho, que com segurança dos castellos o leixou livre, e o Regente o entregou logo ao Infante D. João, e deu em nome d'El-Rei o Priorado do Crato a D. Anrique de Castro, filho de D. Fernando de Castro, e depois a D. João d'Atayde, por cuja morte o houve tambem D. Vasco d'Atayde seu irmão. E depois de despedir com mercês e mui graciosas palavras aquellas pessoas que n'esta jornada o vieram servir, e que por então não houve mester, se partiu caminho d'Abrantes, e com elle o conde d'Ourem. E o Infante D. João se tornou para a cidade d'Evora. CAPITULO LXXV _Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique se foram a Lamego para passarem entre Doiro e Minho. E como o conde de Barcellos se poz em defesa, e do que se n'isso passou_ E ante de seu apartamento tiveram conselho sobre o que ao diante deviam fazer, e accordaram que por quanto já se começara d'entender contra os que eram reveis e desobedientes a seu Regimento, que o Regente se fosse á Beira juntar-se com o Infante D. Anrique, para que ambos pela melhor maneira que o tempo lh'o offerecesse, assessegassem os desmandos e alvoroços em que os fidalgos d'aquella comarca andavam. E assi soubessem logo se o conde de Barcellos queria estar á sua obediencia e ordenança como os outros, e se o contradissesse, que procedessem contra elle de feito e direito, como sua contumacia requeria, pois com ella dava causa a se fazer em muita parte do reino muito mal, e pouca justiça. Foi-se o Regente a Coimbra, e alli se refez da mais gente que pôde, e posta em ordenança e com esperança de guerra se foi a Vizeu, e alli no Couto se viu com o Infante D. Anrique, que tambem para o caso estava de gente, armas e mantimentos mui bem percebido, os quaes por assi sentirem que cumpria se partiram logo para Lamego, onde chegaram com proposito de assi poderosos passarem o Douro, e o Regente usar inteiramente de seu officio nas comarcas d'Entre Doiro e Minho, e Tras os Montes. A Rainha por conselho do conde de Barcellos se partiu d'Albuquerque, com fundamento de ir ao longo do estremo até através da comarca de Tras os Montes, para ir entrar em Portugal pelas terras d'Alvaro Pirez de Tavora, onde o conde de Barcellos e os de sua opinião se offereceram de a irem receber e servir. E de Ledesma a que chegou, enviou seus messegeiros ao conde para saber sua determinação e vontade, e para lh'a fazer maior e mais forte, lhe enviou novos esforços com esperança de grande honra e acrecentamento seu; os quaes messegeiros foram a elle, que estava em Guimarães ao tempo que os Infantes chegaram a Lamego, e sendo de sua chegada d'elles certificado, e da maneira e tenção com que iam, não pôde dessimular a muita tristeza e grande cuidado que por isso recebeu, e respondeu á Rainha escusando-se com coisas necessarias, a não poder cumprir por então seu requerimento, reprendendo com largas razões o pouco cuidado que os Infantes d'Aragão para sua restituição mostravam. E por se mostrar forte aos que de sua parte já sentia mui fracos, enviou dizer ao conde d'Ourem seu filho, que dissesse como disse da sua parte ao Regente, que escusasse passar o Douro, porque elle lh'o não havia de consentir, de que o Infante mostrou grande sentimento, e com palavras e contenença não livres de sanha, respondeu ao conde por maneira, que sentindo elle como a honra e estado de seu pae se despunha a grande perigo, pediu ao Regente por mercê que sobre o caso não houvesse por mal que elle mandasse um cavalleiro por messegeiro a seu pae, de que ao Infante aprouve, e ainda com desejo de mais assessego o obrigava que para isso elle não devia mandar alguem, mas ir em pessoa. E porque Luiz Alvarez de Sousa, que ao conde foi sobr'isso enviado, não lhe abrandou em nada sua tenção tornou a elle em pessoa o conde d'Ourem seu filho, o qual como quer que com palavras de muito amor e razões de grande efficacia lhe pedisse que se decesse de sua opinião, pois o tempo e a razão assi o queriam, nunca o pôde acabar, e assi assaz triste e anojado tornou para o Regente sem alguma conclusão. O conde de Barcellos moveu de Guimarães com mostrança de ao Infante defender por força a passagem. E assentou-se com sua gente em auto de guerra em Meisanfrio, que é logar sobre o Douro duas leguas de Lamego. E mandou alagar e metter de sob a agua todalas barcas e bateis do rio, pelo qual o Infante aceso já em desejo de vingança para que os desprezos e porfia do conde o moviam, determinou logo de passar contra elle, e para isso ordenou que no Douro sobre toneis se fizesse uma ponte porque a gente e cavallos podessem em breve e mui seguramente passar, e assi se fez prestes do mais que para rompimento e peleja cumpria. As quaes cousas vendo o conde d'Ourem aparelhadas com tal trigança para destruição de seu pae, ajuntou comsigo para sua ajuda alguns principaes, perante quem fallou ao Regente. E com palavras de grande prudencia e muita piedade, e com outras de não menos obrigação, lhe pediu que sobrestivesse em sua passagem e lhe desse logar que volvesse a seu pae; porque esperava de o tornar á sua obediencia e serviço prouve d'isso ao Infante, e lhe louvou muito a dôr e cuidado que para remedio de seu pae a todos mostrava. Porque entre as outras virtudes muitas que no Infante havia, esta era n'elle de grande perfeição, ser para as execuções de sua sanha mui temperado, e mui ligeiro de mover por rogos e intercessões dos bons. O conde d'Ourem foi logo a seu pae, e tão evidentes lhe mostrou os erros de sua dureza e os principios que se ordenavam para sua quéda, que vencido do evidente perigo que via, mais que de sua propria vontade, lhe prouve vir como veiu a Lamego falar aos Infantes. Os quaes como souberam de sua vinda sahiram a recebe-lo fóra da cidade acompanhados de muita e mui nobre gente. E posto que entre o conde e o Regente havia odios mui verdadeiros, porém n'aquella hora que se viram houve entre elles palavras fingidas de tanto amor e cortezia, e se abraçavam a cada passo com tanta alegria, que pareceu que um não estimava nem desejava mais bem que a vista do outro, sem alguma lembrança de roturas passadas, e nas contenenças do povo que os assi viam, bem parecia que todos haviam d'isso grande prazer. Era hi presente o Arcebispo de Braga D. Fernando, que com vozes altas começou de cantar o principio do salmo _Ecce quam bonum & quam jucundum habitare fratres in unum_; como a quem parecia que na concordia d'estes Senhores se segurava de todo a paz e descanço do Reino. Os quaes como foram na cidade fallaram entre si suas cousas, e assi nos desvairos passados, e o Regente recebeu com bem na cara as desculpas do conde, que ficou de todo á sua obediencia, approvando em todo o seu Regimento, e prometteu de mais não servir nem seguir a Rainha, salvo n'aquellas cousas em que os mesmos Infantes a servissem, e assi concludiram que o casamento d'El-Rei de necessidade se fizesse logo com a filha do Infante, ao menos com recebimento simples; porque ao tomar de sua casa, se fariam depois suas festas solenes e reaes, como a sua honra e estado cumpria. E assi prouve ao Regente a requerimento do conde que seu cunhado D. Pedro, o Arcebispo de Lisboa, que andava em Castella desterrado, fosse como foi á sua dinidade restituido, e lhe outorgou para si e para os seus outras muitas graças e mercês, a que depois seu agardecimento não respondeu com egual balança. E concordado assi todo se despediram uns dos outros: o Regente e o conde d'Ourem para Lisboa, e o Infante D. Anrique para suas terras, e o conde de Barcellos tornou-se d'onde viera; e isto foi no fim de Fevereiro do anno de mil e quatrocentos e quarenta e um. CAPITULO LXXVI _Das côrtes que se fizeram sobre o casamento d'El-Rei com a Rainha D. Isabel, filha do Infante D. Pedro_ Como o Regente foi em Lisboa logo ordenou côrtes, que com solene ordenança de cidades e villas, e pessoas principaes do reino se fizeram em Torres Vedras, onde além d'outras muitas cousas, em que por bem da Republica se entendeu, o Infante D. Pedro com fundamentos passados da vontade d'El-Rei D. Duarte, e com a necessidade presente que disse, com muita autoridade e eficacia requereu aos do reino outorga e consentimento para El-Rei seu Senhor casar com sua filha, e o povo por conhecer ser verdade o que apontava, e que em christãos não havia por então mulher com que El-Rei tão bem podesse casar como a seu estado e honra cumpria, e assi movidos da humanidade e resguardo com que o pediu, não sómente foram d'isso todos contentes, mas ainda para quando embora tomasse sua casa lh'offereceram um rico presente. Pelo qual o Infante se foi a Obidos, onde era El-Rei, e alli em dia da Ascensão, á tarde, no anno de mil e quatrocentos e quarenta e um, á vista de todos se celebraram os esposoiros entre El-Rei e a Rainha, nas mãos de um Daião d'Evora que servia El-Rei de seu fisico, entrando El-Rei em edade de dez annos. E como os procuradores do povo acabaram de ser respondidos a seus capitulos e requerimentos, se despediram. CAPITULO LXXVII _Como o Regente por meio do conde de Barcellos procurou de se concordar com a Rainha D. Lianor, e das cousas por que ella não quiz_ O Infante D. Pedro de se assi concordar com o conde de Barcellos mostrou que recebia prazer e descanso, crendo que para tranquillidade do reino que procurava, tinha a mais aspera difficuldade passada. E para temperar e vencer a outra da Rainha que sobre tudo desejava, ante de partir de Lamego fallou com o conde seu irmão, e lhe pediu que para ambos se concordarem, como sempre desejara, quizesse entre a Rainha e elle ser medeaneiro; porque elle tinha razão de n'isso a servir, e ella de o querer. Mostrou o conde que d'isso lhe prazia muito, e enviou logo a ella que era já em Madagal, Alvaro Pirez de Tavora, de que muito fiava, encommendando-lhe muito com razões e causas mui evidentes o concerto da Rainha com o Infante, e assi sua desculpa pela não servir na fórma que com ella tinha assentado. A Rainha não ouviu esta embaixada com boa vontade, nem a acceitou como se confiava. Assi por haver já por suspeito o conde, pela concordia feita entre elle e o Regente, em que Alvaro Pirez tambem entrara; como porque lhe parecia, segundo os Infantes seus irmãos estavam então apoderados de Castella e Aragão e Navarra, que com as gentes e poder d'estes reinos apremariam e guerreariam o Regente por maneira que de necessidade lhe conviesse leixar a ella livremente o Regimento, como requeria e desejava. E este esforço e presunção tomava ella porque n'este tempo os Infantes seus irmãos e o Principe D. Anrique, com odio que tinham ao conde e Condestabre se concordaram e cercaram El-Rei em Medina del Campo, e o entraram por força, e recolheram sua pessoa d'El-Rei a seu poder, e lançaram fóra fugidos e destroçados o Condestabre e o Mestre d'Alcantara, e outros que eram dentro em ajuda e defensão d'El-Rei. E n'esta sombra de prosperidade em que a Rainha via seus irmãos em Castella, tomou tanta confiança para seu recurso, que não quiz haver por bom nenhum meio que de Portugal sem o Regimento e criação d'El-Rei lhe fosse cometido. Antes para mais apressar sua destruição e proveza, foi como não devia aconselhada, que para em seu caso obrigar mais seus irmãos, quando os fosse vêr devia levar e dar-lhe para sua ajuda alguma gente d'armas, de que em suas revoltas tinham a necessidade que sabiam, o que á Rainha pareceu bem, e para prover aos seus e a outros que para isso tomou, de cavallo armas e soldo, vendeu e apenhou a mór parte de quanta prata e joias tinha. E camanho erro n'isso fez, ella em suas minguas sem longa tardança o sentiu, porque finalmente o amparo e soccorro que em suas fadigas houve de seus irmãos, com quanto eram tamanhos Senhores, se tornou sómente em fortunas dobradas, e claros enganos em que a trouxeram, e com que acabaram de lhe levar todo o que para repairo seu e dos seus lhe ficava. CAPITULO LXXVIII _Como a Rainha D. Lianor se foi á côrte d'El-Rei de Castella, e das embaixadas que vieram a Portugal_ A Rainha n'esta enganosa confiança de sua certa restituição se foi á côrte d'El-Rei de Castella, a que os Infantes d'Aragão então governavam de todo; dos quaes logo em sua chegada foi com muita honra e acatamento recebida e agasalhada. Onde depois de em pessoa recontar suas querellas e aggravos, com mais graveza por ventura do que foram em effeito, El-Rei por satisfazer a ella e cumprir a vontade dos Infantes, enviou ao Infante D. Pedro uma e muitas vezes mui continuas embaixadas, umas brandas e outras com aspereza, umas mostrando desejar paz, e outras mais desafiando guerra, apontando sempre taes meios em favor e contentamento da Rainha, que a sem razão e o desserviço d'El-Rei de Portugal e o dano do seu reino, que claramente comsigo traziam, conselhavam que se não acceitassem; especialmente porque em todos se requeria que a criação d'El-Rei e do Principe seu irmão e irmãs fosse á desposição da Rainha, ou ao menos em poder de dois cavalleiros, quaes a ella prouvesse, que fossem de todo isentos da juridição e mandado do Infante, o que o reino todo por causas mui evidentes e necessarias sempre contrariou, e muito mais o Regente, que mostrava haver por singular bem-aventurança e grande repouso para si e para seus filhos o amor d'El-Rei, de que tinha certa esperança, pois com tanto amor e perfeição o criava, e de que seria desesperado se fóra de seu poder, e com seu odio e de muitos outros o criassem. E porém sempre lhe prouve, e assi o respondia, que á Rainha tornando-se a estes reinos fossem inteiramente dadas todalas terras e renda que n'elles tinha, com a criação de seus filhos livremente. Ainda que em umas côrtes que n'este anno de mil e quatrocentos e quarenta e dois em Evora se fizeram, foi por todolos tres estados requerido e concordado que a Rainha devia por direito ser de todo privada, e que principalmente não devia vir a estes Reinos, assi pela gente estrangeira que como imiga n'elles metera e os guerreara, como pelos grandes trabalhos e muitas despezas que com receio de guerra tinham por sua causa padecido, em especial se houve por mui perigoso inconveniente o odio e má vontade que aos principaes do reino já tinha, de que se esperava ella com El-Rei seu filho procurar sempre destruições e cruas vinganças, que a muita lealdade de seus vassallos lhe não mereciam. Os Infantes d'Aragão confiados no mando da governança de Castella que possuiam, havendo por seu abatimento não se fazerem os feitos da Rainha sua irmã á sua vontade, enviaram ao Regente que era em Santarem outra embaixada, que elles fingiam ser já derradeira, em que vieram por embaixadores um Gomez de Benavides, e outro Affonso Fernandes de Ledesma, doutor em leis, e pessoas de grande estima e auctoridade em Castella; estes em seus apontamentos seguiram os passados dos outros. Trazendo logo comsigo arautos e trombetas, como officiaes de desafio real, para que se ás cousas tocantes á Rainha não respondessem conformes a seu requerimento, que solemnemente desafiassem logo a guerra de reino a reino. A qual publicavam mui soltamente, crendo que com medo d'ella este reino ácerca do Regimento se mudara de seu primeiro proposito. E estando estes embaixadores ainda por responder, veiu com uma carta da mão d'El-Rei para o Regente, um Custodio, da Ordem de S. Francisco de Castella, e com o trellado d'ella aos embaixadores, em que sustancialmente affirmava o que elles mesmos já requereram. Apontando as cousas porque devia com rasão favorecer e ajudar a Rainha. E que por ellas sem quebrantamento das pazes podia a estes reinos justamente fazer guerra. CAPITULO LXXIX _De como o Regente sobre a resposta que a estas embaixadas se daria, fez côrtes geraes_ Estes accidentes tão apressados pozeram o Infante D. Pedro em muito cuidado; porque eram taes, que de necessidade ou teria guerra, ou por fraco perderia toda sua honra e estima; porque por isto foi certificado que ao povo de Castella em ajuntamento de côrtes prouve por industria dos Infantes que para restituição da Rainha se fizesse guerra a estes reinos, e para isso se fizessem apurações e lançassem pedidos, que se logo lançaram. E porém o Infante disse aos embaixadores que os casos de seu requerimento eram de calidade, a que se não podia dar direita resposta sem accordo de todo o reino, e portanto lhes rogava que tivessem assi até se fazerem côrtes, onde elles tornariam a ser ouvidos e respondidos, como a todos bem parecesse. Os embaixadores foram d'isto mui contentes; porque viram levemente o effeito do principal fundamento e desejo que traziam, que era por semearem temor divulgar-se sua embaixada por todo o reino. Assignou o Regente as côrtes na cidade d'Evora, onde por suas cartas mandou que os procuradores do povo se juntassem no Janeiro do anno que começava, de mil e quatro centos e quarenta e dois. Notificando-lhe logo a sustancia e causa de sua vinda; e porque lhe parecia que a guerra se não poderia escusar, e não fossem com algum improviso dano salteados por negligencia, determinou que os Infantes a que tambem escreveu, fossem logo ás frontarias de suas comarcas, e provessem todalas fortalezas da raia e as fizessem velar, armar, bastecer e repairar, como para tal necessidade cumpria se sobreviesse, e assim mandassem arredar os gados e provisões dos estremos. E defender os mercadores que não entrassem em Castella; e assi se cumpriu e se poz em todo o reino tanto resguardo, como se a guerra fôra claramente rota, e aos Infantes e grandes e pessoas principaes do conselho que não podiam vir a ser presentes, enviou a sustancia de toda a embaixada, e a cada um ácerca do que responderia pediu seu conselho e parecer em escripto, como sempre costumou. Partiu-se o Regente para Evora, e assi os embaixadores, e ao dia que tinha posto foram juntos os procuradores, onde o Infante por si lhes propoz com largo recontamento a necessidade que o movera aos chamar, e assi lhes apresentou a embaixada presente, resumindo as outras passadas da mesma sustancia, cuja conclusão era que El-Rei de Castella requeria que por bem e paz d'este reino, El-Rei e seus irmãos fossem entregues á Rainha, com inteira governança do reino, se não com força e por guerra de Castella se faria, rogando-lhe que sobre todo consirassem, e como bons portuguezes e leaes vassallos d'El-Rei lhe dissessem o que devia dizer e fazer; havendo sempre respeito ao que mais fosse serviço de Deus e honra d'El-Rei e bem de seus reinos. Apontando a necessidade que havia de dinheiro, para que sua ajuda cumpria. E leixando alguns rumores e alvoroços que em continente logo houve, e muitos dos que sem aquella consiração e resguardo que deviam bradavam por guerra e a requeriam, finalmente os procuradores recolhidos em seu consistorio e praticando com muita madureza o caso, tornaram ao Regente seu parecer, que sustancialmente foi todo remetido a seu juizo, por todo confiarem de sua lealdade, siso, e esforço, e para as necessidades que occorriam outorgaram tres pedidos. E conformando-se o Regente com o parecer dos procuradores e assi com as respostas que em escripto houve dos ausentes, deu em nome de El-Rei resposta aos embaixadores, escusando-se por muitas causas a não dever cumprir, nem haver por bem o que requeriam, e que assi era dos do reino aconselhado, e que se por isso El-Rei de Castella quizesse mover guerra contra estes reinos, que lhe pesaria muito por ser entre christãos tão conjunctos em sangue e amigos. Porém quando tão sem razão a movesse, e como imigo quizesse n'elles entrar, fosse certo que a contenda não duraria muito; porque no campo o havia de receber e não o esperar de trás das paredes. E que esperava em Deus pois era justo, que na victoria o faria tão herdeiro, como fizera a El-Rei D. João, de cujos lombos sahira. Com esta resposta despediu os embaixadores de Castella, que com todas suas ameaças passadas não publicaram a guerra como mostravam. FIM DO I VOLUME End of the Project Gutenberg EBook of Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I), by Rui de Pina *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI (VOL. I) *** ***** This file should be named 25987-8.txt or 25987-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/5/9/8/25987/ Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.net/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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